“A bebida entra, o sujeito sai”

17 de abril de 2016 12:24 2489

Um dito popular afirma que quando “a bebida entra, a verdade sai”. Do ponto de vista psicológico, essa sentença ganha certa dose de “cientificidade”, porém reafirma sua verdade: “o supereu é solúvel em álcool”.
O supereu (ou superego) é a instância psíquica responsável pela autocensura do sujeito. Em certa medida, ele opera uma repressão moral e a regulação dos impulsos para que a pessoa possa conviver minimamente em sociedade, sem impor seus desejos individualistas aos outros, sem que a desinibição impere. Um dos indicadores de sua existência é o sentimento de culpa, que emerge diante de algum ato ou pensamento que se revele contrário aos direitos de alguém. Trata-se portanto de uma instância capital para a civilização. Nesse sentido, a sabedoria popular alerta que, uma vez a pessoa estando sob efeito de álcool, diluída sua capacidade de reflexão, ela correria grandes riscos de “se expor” ou cometer um ato imoral. Quando essa lei interna (supereu) não opera, encontramos uma condição de anomia, na qual o sujeito é impelido a ir para além dos limites. Muitas vezes cavando seu próprio fim.
Duas questões se impõem à reflexão. A primeira, poderia ser traduzida na ideia ilusória de criar formas de banir o álcool e todas as drogas psicoativas de nosso meio para que pudéssemos viver em uma civilização feliz. Ora, já existe uma antiga política repressiva, amplamente difundida de “guerra às drogas”, que se autonomeia como saída para lidar com os problemas derivados da comercialização ilegal de determinadas substâncias. Esse sistema não funciona e nunca irá funcionar. Basta lembrarmos da famosa Lei Seca de 1920, nos EUA, cujo cumprimento foi amplamente burlado pela fabricação clandestina de bebidas e seu contrabando, até ser abolida em 1933 devido ao seu fracasso. Isso se deve ao fato – descaradamente negado na atualidade – de que nunca existiu uma sociedade sem drogas e nunca irá existir, pois ela faz parte da experiência humana, da cultura desde seus primórdios. As transformações sociais é que são responsáveis por implicar procedimentos diversos à diferentes produtos ao longo da história.
Pergunte aos mais velhos sobre os lança-perfumes pulverizados livremente pelos salões durante o carnaval. Hoje ele é proibido. Por outro lado, no Brasil, estudos recentes sobre o álcool apontam a valorização e incentivo cultural de seu consumo desde a juventude. E adivinha qual a droga de maior incidência na população? Adivinha qual a que mais possui relação direta com acidentes de trânsito e de trabalho? É a mesma que possui um potencial letal 144 vezes maior que a maconha. Portanto, o “problema da droga”, seja qual for, não existe em si mesmo, mas é o resultado da convergência de um produto, uma personalidade e um modelo sociocultural.
Outra questão de suma importância diz respeito à visão reducionista do álcool em seus efeitos puramente químico no organismo. Atribuí-lo um poder de entidade autônoma e mágica é uma manobra rasteira que muitos indivíduos adotam para justificar seus atos. Mas, nenhuma droga em si tem qualquer efeito relacionado com o bem ou o mal! O que a pessoa diz ou faz ao usar uma substância psicoativa é o resultado de um complexo sistema de influências que inclui os componentes químicos, mas não se limita a eles. Sua ação varia de pessoa para pessoa, portanto ela não determina consequências mal sucedidas. Não podemos perder de vista a responsabilidade e imputabilidade do sujeito, pois a droga não pode explicar nem justificar o mal cometido por ele, e seu uso não deve ser adotado como álibi.
Até quando vamos continuar culpabilizando o álcool (e outras drogas) pelos erros, cretinices e barbáries cometidos pelos homens? Até quando vamos “justificar” nossas falhas ou “terceirizar” nossas responsabilidades a um “efeito químico” que supostamente toma um indivíduo em um determinado momento e “faz” com que ele tenha comportamentos desviantes? O prognóstico não se apresenta favorável. Pois nesta sociedade há uma leva de indivíduos imaturos, oportunistas, sem consciência política, sem uma moral internalizada, que facilmente “com a marvada pinga se atrapaiam”.
E o problema não encerra aí, pois, com efeito, toda uma comunidade poderá ter o “trabáio de carregá” as consequências desastrosas e lastimáveis de seus caprichos pessoais e de recaimento público.


Por Henrique Aquino – Psicoterapeuta

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