A parrésia do ano novo

23 de janeiro de 2016 15:17 1621

A velha e já desgastada esperança de um “milagroso novo começo”, comumente expressa no Dia Mundial da Paz (1 de janeiro), parece ter, por fim, decaído mais uma vez em seu remate inexorável.
Assim tem sido todo desfecho da cíclica aspiração ilusória por um mundo melhor na civilização ocidental. O predomínio das horrendas imagens dos noticiários, ainda que não sejam honestas quanto à realidade total de nossa vida comunitária, aponta uma crise na cultura. Desvela uma crescente epidemia de enfermidades morais que empesteiam as várias formas de relações humanas. Fato é que para um ano feliz a valer, como se deseja corriqueira e automaticamente uns aos outros, é preciso mais ação e menos paixão. A intensidade do brilho caloroso da vida será inversamente proporcional ao tempo de silêncio que a TV e a internet, com seus programas e páginas movidos pela cultura do abuso, fizerem no lar de cada um.
Somos aquilo que comemos, aquilo que lemos, aquilo que assistimos, “aquilo” que relacionamos… Ninguém sai ileso de nenhum contato realizado com o mundo. Afetamos e somos afetados continuamente e, muitas vezes, sem termos consciência dos impactos derivados desse ininterrupto encontro com o mundo. Portanto, é preciso cuidado com o que escolhemos para nos informar ou relaxar e entreter nas horas de folga. Os mensageiros na era da tecnologia como jornalistas, correspondentes, âncoras de noticiários e apresentadores de TV estão em sua maioria, lamentavelmente, a serviço do abuso! Em tempo real, cobrem julgamentos, acidentes, crimes, contendas familiares, conflitos conjugais e toda gama de desgraça humana particular e íntima que num passado se pretendia mantê-los em segredo, ou pelo menos sem o peso de furo de reportagem. Nessa cultura, no entanto, esse conteúdo é fomentados à via pública como manchetes.
Essa e nenhuma mudança cultural acontece de modo linear ou abruptamente, tampouco são ditadas por uma única fonte. Todavia, sua constância cria um ciclo vicioso: à medida que alcançam um nível de ideia formativa produzem por sua vez um público demandante pela baixaria. Perceber que os temas abusivos tornaram-se o centro de muitas páginas de internet e programas televisivos, com alto ibope de seus séquitos assíduos, é constatar com estupor que há, para além de uma mudança nos comportamentos, um declínio pungente de nossa civilidade. Crise de civilização significa ruptura na transmissão de valores, dos pressupostos que tentam regular as condutas dos homens em sociedade.
Há muito tempo somos bombardeados por desnecessárias informações sobre infelicidades de todo gênero, até chegarmos ao patamar da banalidade do costume à coisa toda. Os abusos da exposição e da publicidade estão afetando enormemente a maneira como as pessoas se relacionam. Tornamo-nos desconfiados, amedrontados, com uma dor insuportável de incerteza e desorientação em relação a um suposto potencial de maldade do outro. O declínio se manifesta pela notória incoerência de comportamento: Somos capazes de subverter a própria Constituição (democrática) Federal que procurou proteger acusados de prematuras e injustas sentenças e reverter o princípio de que todos são inocentes até que se prove o contrário.
Não se trata aqui de negar a realidade. Ninguém questiona que tem havido um aumento de casos de violência de todo o tipo entre os homens, mesmo levando em conta de que estamos mais determinados a expô-los, por vezes, pelo próprio bem comum. Trata-se de denunciar a dramatização e a ênfase abusiva sobre o tema circundante. A violência sobre a violência. É preciso olhar para a realidade de uma forma mais ampla, considerá-la possível a partir do reconhecimento da capacidade humana unificadora, de viver por ideais que foram capazes de conter nossos impulsos mais selvagens e do esforço laborioso e constante de conciliar e integrar tendências em conflito.
A paixão tem seu compromisso com o fim. Tomemos, pois, um bom gole de lucidez para seguir nesse “restinho” de ano com compreensão e solidariedade. Aproveitemos os bons ventos que advêm da desilusão e “sejamos nós as mudanças que queremos para o mundo”. A flor cobra sua beleza com trabalho e suor de mãos enrugadas e com unhas bem cortadas.

 

Henrique Aquino

Psicoterapeuta
Mestre em Psicologia Social

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