O corpo dela, as regras dela!

6 de março de 2016 11:50 1655

Desde que o Zika Vírus foi associado à epidemia de microcefalia no Brasil, a sociedade se vê forçada a revolver o espinhoso tema do aborto e, inevitavelmente, revelar seus preconceitos escondidos. Os valores ideológicos autoritários, em geral, se mantêm encobertos por uma lustrosa camada de virtude. No entanto, bastou o fenômeno cutucar sua fina película para fazer os dragões do moralismo cuspirem suas chamas de ódio contra boa parte da minoria social de maior contingente humano do país – as mulheres.
Aqui no Brasil, o aborto só é permitido em caso de risco de morte da gestante, anencefalia do feto e gravidez por estupro. No entanto, embora a lei autorize o aborto apenas nessas três situações específicas, a prática escancara outra realidade. Por ano, o SUS contabiliza mais de 200 mil atendimentos decorrentes de complicações pós-aborto, em sua maioria induzidos. Além disso, segundo a Organização Mundial da Saúde, são realizados no Brasil mais de 1 milhão de abortos “inseguros” por ano. Com efeito, o aborto ocupa o quinto lugar no ranking das causas de mortalidade materna no país. Todavia, quando o aborto induzido é realizado por profissionais capacitados e em boas condições sanitárias o procedimento é bastante seguro para a mãe. Acontece que só uma parte da população pode pagar por essa segurança. Os valores cobrados pelo procedimento de boa qualidade em clínicas particulares podem chegar a 15 mil reais. Ou seja, aborto no Brasil é crime, mas também é liberado e seguro se você puder pagar por ele.
Os números apontam para várias reflexões necessárias, dentre elas de que o aborto é um problema, maior ou menor, dependendo da condição financeira da gestante, portanto. Se a mulher tiver dinheiro, seu sofrimento passará mais por questões pessoais. Mas, se essa mulher for pobre, além de seu dilema interno ela terá ainda que correr outros riscos. Cabe lembrar que, além de gozar das boas condições higiênicas das clínicas privadas, está incluso e garantido no pacote o anonimato da gestante. Por outro lado, aquelas que não têm condição socioeconômica favorável precisam buscar clínicas clandestinas, com profissionais de competência duvidosa, correndo risco de serem presas ou risco de morte. Há um sofrimento genuíno vivido pelas mulheres que decidem, por razões pessoais, fazer um aborto, e, como se observa, esse sofrimento é ampliado no caso de mulheres mais pobres. Mas quem liga para isso? Como a sociedade lida com esse fato? Como via de regra, a sociedade reacionária e violenta descarta a prática do pensamento e da empatia e opta pelo caminho mais fácil: a discriminação e o julgamento.
Além do aspecto socioeconômico, outra flecha que atinge diretamente o cerne da questão e que deve ser considerado é a dimensão política acerca do aborto, ou, melhor dito, do direito da mulher em decidir sobre seu próprio corpo. Muitos mitos ecoam em nossa sociedade quanto à maternidade, boa parte deles forçando uma realidade que nunca existiu e nem existirá. Pintam a maternidade como uma forma de “padecer no paraíso” e repetem esse mantra como se houvesse um instinto materno que aguardasse o momento de uivar dentro da mulher clamando por um filho.
É sabido que o corpo da mulher – assim como todos os corpos humanos – são mais que dados naturais, são construções históricas e sociais. Precisamos, portanto, rever os discursos que há muito enclausuram a liberdade feminina e mantêm milhares de vítimas de preconceitos, sobretudo aquelas que dizem “não” à maternidade.
Ampliar direitos de um determinado grupo, ainda mais esse grupo sendo uma minoria social, não significa restringir os direitos de outro grupo (maioritário). Talvez restrinja privilégios, e provavelmente você tenha medo disso, principalmente se sua mentalidade for fascista… ou machista. Assim, se mantivermos o mínimo de honestidade intelectual frente à realidade dos fatos, o Dia Internacional da Mulher ainda nos importa! Mais que uma data “comemorativa” adornada com flores, chocolates e elogios frívolos, o dia pede união e reflexão sobre a necessidade de “luta”. Luta pela continuidade da emancipação feminina e da ininterrupta transformação do seu lugar social em nossa cultura.


por Henrique Aquino
psicoterapeuta

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