Qual sua música nesse carnaval?

8 de fevereiro de 2016 11:06 1933

Henrique Aquino
Psicoterapeuta
Mestre em Psicologia Social


Esse ano, nossa região está marcada pelo fenômeno do cancelamento do apoio das prefeituras na realização do carnaval em diferentes cidades. Dentre os motivos alegados está a preocupação com a segurança pública. Diante das ocorrências de violência urbana, tiros e assassinatos, as autoridades decidem pela proteção das pessoas contra essa expressão emblemática de violência humana. No entanto, cabe lembrar que, se por um lado tomamos medidas extraordinárias e nos resguardamos fortemente contra os perigos do ato assassino, por outro lado não temos o mínimo cuidado contra a violência simbólica partilhada cotidianamente. Não temos esse cuidado porque não temos consciência desse tipo de violência. E se não temos consciência de sua forma de existência, essa alienação, ironicamente, nos desloca como pêndulos do lugar de vítimas para o papel de “autores criminosos”.
Chamamos de violência simbólica aquilo que está entre nós (todos nós), que permeia e antecede todo ato físico de violência. A agressividade verbal é uma forma conhecida de violência simbólica, como a fofoca e a difamação. Diga-se de passagem, não há cidade da amizade que escape a esses fenômenos de violência! Muito pelo contrário. Parece que a deturpação do conceito de “amizade” – visto como uma relação íntima sem limites de espaço entre eu e o outro – autoriza os “amigos” a tripudiarem sobre a vida alheia. Na prática, funciona mais ou menos assim: A cidade é da amizade, todos somos amigos, todos temos “liberdade” com o outro, “eu o conheço bem”, posso então falar “com propriedade” da vida do outro!
Falar é o mesmo que fazer, mas quem pensa nesse fato na hora de falar do outro? Preferimos acreditar que xingar e caluniar é menos violento que assediar, espancar e matar. Tudo é violência. A ignorância aqui reside do fato de, até hoje, separarmos o corpo da alma numa pobre visão dualista de ser humano. Negamos que a palavra entra pelo ouvido, mas tem seu fim no coração. Toda palavra faz doer na alma, que por sua vez habita um corpo. Portanto, todo sofrimento é visceral. Nossos atos de fala provocam efeitos subjetivos e objetivos. Infelizmente, aquele que fomenta a violência verbal não enxerga a própria violência. Prefere projetá-la no outro, alguém que seja capaz de atirar e matar. Se não bastasse o autoengano, os “arautos da moral e dos bons costumes”seguem como gralhas nas redes sociais, clamando por mais ação da polícia, da igreja, do prefeito etc. Quer exemplo maior de violência simbólica que esse cinismo?
E como dito, a alienação da violência simbólica nos deixa vulneráveis a ocupar os dois lados da moeda, vítima e algoz. Já que falamos de carnaval, é bom lembrar sobre a amplitude do comportamento de assédio sexual enquanto prática de violência, de opressão baseada na pressão direta de um indivíduo sobre o outro. No assédio não há empatia pela pessoa do outro, não há respeito e valorização do outro como sujeito de direitos, apenas o exercício de tomá-lo como corpo-objeto para satisfação das vontades e prazeres de um. Todavia, se escuta:“quem pratica o assédio é o outro, eu não!” Não? Ora, as preferências pelas letras musicais em auge delatam o comportamento violento culturalmente aceito. Valorizar as canções que fazem apologia ao assédio não seria uma forma de conivência e incentivo de sua prática? Se falar é fazer, ouvir passivamente é consentir. A banalização de seu perigo nos deixa de guarda baixa, sem notar sua influência na construção das relações sociais entre homens e mulheres. Ou seria a música um espelho dessa violência já institucionalizada?
O que esperar de uma sociedade que se vê obrigada a criar leis como Maria da Penha, cujas estatísticas produzidas desvelam o horror da violência musicalizada nas rádios e festas? O que esperar de uma cultura na qual um grupo de jovens agride verbalmente um Chico Buarque na rua, ao mesmo tempo que um “Safadão” possui um dos cachês de shows mais caros do país? O que esperar de uma imprensa que chama um Chimbinha de artista genial, da TV que legitima e ovaciona Ivete e sua crise de ciúmes (sentimento de posse do outro)?… Não sei. No entanto, se nesse Domingo eu fizer três gols, também vou pedir minha música no “fantástico”país do carnaval.
Quero a Marcha Fúnebre de Chopin, pra embalar o cortejo da cultura musical brasileira, assassinada diariamente pelos foliões de bem.

 

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