Evolução

2 de maio de 2016 16:10 1186

Quando lá atrás, eu era bem criança. Era mesmo, daquelas de fazer molecagem com cada pedaço de objeto que se dispusesse a ser transformado pela magia. Sofria de hipervitalidade, curioso, me metia à perguntação de tudo, revirava as coisas que existiam e também as fabuladas. Já andava sobre dois pés, descalço, então imagine a labuta pra quem tinha o dever de me dar os devidos contornos. Não entendiam bem minhas crenças, nem a doença e, recorrente, me chamavam de problemático ou custoso. Também pudera. Eu fazia o gelo pegar fogo e exalar perfume debaixo da chuva.
Nesse principiar da vida, as palavras iam entrando na minha cabeça pelos buracos do lado, de modo vagarinho, outras vezes no grito. Dependia muito donde punha os pés ou no que minhas mãos se atreviam a mexer. “Ah, seu filho da mãe-terra!” E era mesmo. Tinha terra nas unhas, dos pés e das mãos, tinha poeira nos olhos, de quando cavalgava ou bicicletava. O cabelo, nem se fala. Não fossem os banhos ordinários e obrigatórios me tomarem no final dos dias ou início das noites, teria mudado a cor da pele também… provavelmente para um vermelho-fogo de burro fugido. Tempos difíceis aqueles, quando a existência parecia um descambado sem limites.
No meio da vida a gente chega porque tem que crescer. E todo “no meio” é lugar de conflito. Digo “conflito” por medo de dizer a verdade. A palavra é “guerra”, ou “luta” mesmo. Ah, o medo! Mal sabia que esse gigante negro era o demoniador comum de tudo que habita o meio-humano. Por medo a gente apruma o corpo, já não diz e nem faz tudo que dá na telha. Muda o jeito de andar na rua, não sobe e desce da calçada, não trepa no muro pra ver do outro lado e nem apanha seixos nos atalhos. Nada de ir fazendo curvinhas, feito palavra em poesia, não. Nem pensar! Até porque, já contava com a escola. Aprendera a ler e garatujar no modo cientificamente comprovado.
Com o passar do tempo e fome ainda acesa, aprendia sobre ele – o senhor tempo. Sujeito de respeito que cobrava temência. E não é que funcionou! Sinal pra começar a aula, sinal pra terminar. Hora de estudar, hora de brincar… Tudo no seu lugar, sem mistura. “Portão pra fora, direto pra casa”, “não fale com estranhos”, “não estranhe!”. Linha reta, passo firme e uniforme, que nem fazem os coturnos no tiro. Assim, voltava pra casa mais cedo, comia na hora e quantidade recomendada, e sobrava mais tempo… para ver televisão, por exemplo. Televisão ensina tanta coisa que a gente aprende a chamar de importante… Mas também, com aquele povo todo bonito e bem-dito orando… fica fácil da gente se apegar.
Me formei! Sem titubear, sigo com retidão a alquimia dos elementos – Medo e Tempo. A eles devo toda honra e toda glória do lugar garantido que tenho hoje no mundo. Agora sou um grande animal. O que digo não diverge do balbuciar de meus pares de quatro patas. Vou em harmonia com a minha pelagem que pouco se diferencia das outras cabeças. Sou parte partida de um grupo unido à valer. Ninguém nota se me afasto pra beber água ou lamber sal. Acho que eles guardam a certeza de que não irei longe. Sabem que fui bem educado. Apesar da minha força, não romperia sequer uma cerca de bambu seco enfileirado. Penso como todos os outros, me aqueço e me esqueço no calor do couro duro. Segurança e certeza são um tudo na vida, moço!
Não é preciso fazer muito pra cuidar de mim agora que amadureci. É só seguir os instintos, o som deleitoso do berrante… O rebanho me amadrinha passivamente. Ninguém gasta comigo ferrão. Gozo da melhor saúde e tenho a carne macia, graças à boa pastagem, terra plana e um bocado de ração de qualidade. Ah, que vida morna e longa me espera!.. trotando sereno no orvalho, até o abate e, derradeiramente, à etiqueta das facas e garfos que compõem a mesa dos reputados homo sapiens.


Por Henrique Aquino – Psicoterapeuta

 

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