A tecnologia tem proporcionado um estreitamento da distância entre as pessoas. Com efeito, a facilidade de interação por meio das redes sociais e o acesso a inúmeras informações em tempo real acentuou o seu uso. De fato, precisamos reconhecer que a internet facilitou a criação de um espaço plural e democrático, que oferece infinitas possibilidades aos indivíduos. No entanto, é preciso refletir sobre alguns fenômenos que acontecem nesses ambientes, como é o caso da atual “cultura do cancelamento”.
Se você está inserido nas redes sociais, provavelmente já presenciou o cancelamento de alguém ou até mesmo pode ter sido alvo dessa prática. O movimento é entendido como: “uma onda que incentiva pessoas a deixarem de apoiar determinadas personalidades ou empresas, públicas ou não, do meio artístico ou não, em razão de erro ou conduta reprovável. Nos termos da definição da palavra “cancelar”, a ideia do movimento é literalmente “eliminar” e “tornar sem efeito” o agente do erro ou conduta tidos como reprováveis”.
A cultura do cancelamento ganhou mais força com o Movimento #MeToo, no ano de 2017, em que homens poderosos da indústria cinematográfica hollywoodiana sofreram diversas denúncias de assédio sexual, o que fez com que alguns perdessem o lugar de prestigio que ocupavam. Além de incentivarem outras mulheres a denunciarem casos de abuso.[2] Nesse sentido, é notório que a ideia original surgiu como forma de dar voz a causas nobres, como no caso mencionado anteriormente. No entanto, o que se percebe atualmente é a propagação desse fenômeno nas redes sociais de forma indiscriminada. Pessoas e contas têm sido canceladas sem um efetivo diálogo, visto que na maioria dos casos os alvos do cancelamento não possuem um direito de resposta, o que acaba por impedir que a internet seja de fato um ambiente democrático.
É importante mencionar que o cancelamento ocorre acompanhado de justificativas como: “essa é minha opinião, você deveria respeitar”; “estou exercendo minha liberdade de expressão”; “você tem um perfil público e não aceita críticas?”.[3] De fato, a nossa Constituição Federal protege a livre manifestação de pensamento em seu art. 5º, IV, como um direito fundamental do cidadão. No entanto, a cultura do cancelamento pode violar outros direitos, como o direito à honra – entendido como um direito da personalidade – também protegido pela Carta Magna em seu art. 5º, V e X.
Nessa perspectiva, vale lembrar que a lesão a qualquer direito da personalidade, entre eles encontram-se o direito à imagem, à honra, ao nome e outros que podem não ser positivados no Código Civil de 2002, configura dano moral. Contudo, é importante compreender a real função de tal instituto, como bem explica Anderson Schreiber: “A definição do dano moral como lesão a atributo da personalidade tem a extrema vantagem de se concentrar sobre o objeto atingido (interesse lesado), e não sobre as consequências emocionais, subjetivas e eventuais da lesão”.[4] Nesse sentido, compreendendo que o nosso ordenamento jurídico não reconhece a liberdade de expressão como um direito absoluto – isto é, inquestionável, rígido, obrigatório – é necessário afirmar que os direitos conflitantes nessa questão – direitos da personalidade e direito à livre manifestação de pensamento – devem ser sopesados em cada caso concreto.
Para além das implicações jurídicas citadas anteriormente, é importante que tenhamos espaços no próprio ambiente virtual, como palestras e cursos que promovam uma educação digital. Isso com o objetivo de eliminar comportamentos repressivos e intolerantes dos internautas. Para que se possa criar uma internet mais democrática, e pessoas que saibam usar as ferramentas digitais para promover reflexões efetivas sobre determinados temas ou atos e que entendam que todos nós estamos sujeitos ao erro, bem como a mudanças de posicionamentos ao longo do tempo. Então, reflita: e se hoje o cancelado fosse você?
Texto por: Zélia Maria Martins Guilherme
NOTAS DE RODAPÉ:
[1] HONDA, Erica Marie Viterito; SILVA, Thays Bertoncini da. O “Tribunal da Internet” e os efeitos da cultura do cancelamento. Migalhas, Ribeirão Preto, 30 jul. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2TDIJPl. Acesso em: 23 out. 2020.
[2] GOLDSBROUGH, Susannah. Cancel culture: what is it, and how did it begin? The Telegraph, Londres, 30 jul. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2GiDtOd. Acesso em: 26 out. 2020.
[3] ANDRADE, Marina Ratti de; RIBEIRO, Mariana Barreto. A responsabilidade civil de quem pratica o “cancelamento virtual” mascarado pelo direito à liberdade de expressão. Migalhas, Ribeirão Preto, 21 out. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3mMcmuf. Acesso em: 22 out. 2020.
[4] SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2014.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANDRADE, Marina Ratti de; RIBEIRO, Mariana Barreto. A responsabilidade civil de quem pratica o “cancelamento virtual” mascarado pelo direito à liberdade de expressão. Migalhas, Ribeirão Preto, 21 out. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3mMcmuf. Acesso em: 22 out. 2020.
GOLDSBROUGH, Susannah. Cancel culture: what is it, and how did it begin? The Telegraph, Londres, 30 jul. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2GiDtOd. Acesso em: 26 out. 2020.
HONDA, Erica Marie Viterito; SILVA, Thays Bertoncini da. O “Tribunal da Internet” e os efeitos da cultura do cancelamento. Migalhas, Ribeirão Preto, 30 jul. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2TDIJPl. Acesso em: 23 out. 2020.
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2014.