Começou tudo com um arroz de carreteiro. Era feriado aqui, em Perdões, véspera do 199º aniversário da cidade, e eu, por pura pressão externa – caso esse demandado em prol da harmonia geral -, reuni toda a resignação e resolvi preparar com a maior boa vontade a receita de Instagram, detectada por minha namorada: um tal de arroz de carreteiro fit, ou seja, de baixas calorias. Pois bem! Passada a fase de estudo da receita, tão fundamental, (disponho realmente dos apetrechos e ingredientes de que preciso?) fui logo pegar a DP9000 (panela de pressão com 12G), o objeto da moda, adquirida há uma semana. Me senti, confesso, feito um físico nuclear, pronto a inaugurar o tão sonhado equipamento culinário. Enquanto a cebola dourava na panela e o alho estalava como fogo de artifício do 7 de setembro, recebi uma notificação no meu relógio holográfico de pulso: “Atualização dos dados do Satélite James Webb: novas galáxias identificadas no Quadrante Ouro Preto do universo.”
EH, estamos em 2100. E sim, ainda fazemos arroz de carreteiro! Os avanços tecnológicos trouxeram de volta alguns gênios do passado: Sílvio Santos, Hebe Camargo e, claro, Chico Anysio. Sem nos ater a detalhes técnicos, Jurassic Park se tornou realidade! Através da “deextinção”, empresas de bioengenharia começaram a reverter o extermínio de plantas, depois animais; agora, o Homem do Baú retorna. O danado mandou congelar o cérebro e, por transferência mental, fizeram um upload de sua memória empreendedora em um modelo mais estribado de clone. BUM: imortalidade! Fato é que vocês leitores não precisam gastar fosfato indagando a idade em que me encontro, mas, sim, questionar os desenlaces desses acontecimentos.
Seja como for, a notificação me incomodou. Desde que o James Webb começou a revelar galáxias que não deviam estar onde estão, nem com o tamanho que têm, já se tecem outras teorias diferentes acerca do Big Bang. O universo, à semelhança aquele parente que sai para comprar cigarros e reaparece vinte anos depois prenhe de histórias, possui segredos formidáveis. Ancorados nos dados fresquinhos do célebre telescópio, agora uns dizem que nós, ao fim e ao cabo, estamos morando dentro de um buraco negro: num resto espremido de outro universo, o qual já teve seus próprios imbróglios, suas guerras, seus apresentadores de TV. Nada de explosão divina ou início glorioso — mal, mal uma sequência intrincada de acontecimentos cósmicos, como receita de Instagram: sem medida, sem começo certo, sem etapas claras.
Experimentando na pele a dificuldade de conciliar ingredientes sortidos, quase finalizando o bendito rango, ouvi um ding vindo do visor da engenhosa panela: a assistente virtual, Dona Palmirinha 9000, resolveu dar um palpite:
– ALERTA: esta receita contém 32% mais sódio que o permitido pelo protocolo alimentar da senhorita Ester!”
– FICA QUIETA, DONA PALMIRINHA! – gritei.
– Recomendo substituir a carne por proteína de ervilha.
– Recomendo que você vá tomar banho de óleo – retruquei.
Desde que a IA começou a ser usada nas cozinhas domésticas me sinto um prisioneiro. Há apenas uma semana no lar, ela já estava me azucrinando para cumprir suas regras. E sabe de tudo: quantas vezes eu uso azeite, quantas taças de vinho eu tomo, os doces que são escamoteados da geladeira, as mensagens não respondidas no holofone.
– Você ignorou um total de 18 mensagens da sua sogra. 12 da sua namorada 5 dos seus amigos. Essa desídia comprometerá seu score afetivo.
Suspirei. Não aquele suspiro de quem pede socorro; não, amigos! Era mais o suspiro do homem arruinado, do índio massacrado. A Palmirinha hi-tech chiava no canto como quem quer chamar a polícia dos costumes, e eu, com a colher de pau em riste, matutava se tudo isso era mesmo por causa da fraldinha ou se, na verdade, era só mais uma tentativa desesperada de manter controle em meio ao caos, esse caos universal que, hoje suspeitamos, talvez nunca tenha começado, tenha começado inúmeras vezes, ou, sequer, precisou começar.
por Maxmiller Hubner