Pelos Caminhos do Meu Brasil: Memórias de um Andarilho Apaixonado

1 de novembro de 2025 18:39 202

Nasci entre aromas de cuca e ecos de hinos luteranos e católicos, em Blumenau, onde a tradição alemã moldava os dias com disciplina e afeto. Cresci sob o olhar firme do pai e a autoridade silenciosa da Mutter e da Oma, mulheres de força e ternura que jamais se enfrentava — apenas se reverenciava.Fui vento errante por este país imenso. Soprei frio na Serra do Rio do Rastro, onde a neblina dança com os penhascos, e me aqueci com o chimarrão em Chapecó, entre conversas lentas e olhares sinceros.

Em São Joaquim, o frio cortava como navalha, mas a maçã colhida direto do pé adoçava a alma. Fraiburgo me deu esse sabor.Piratuba me acolheu com águas quentes, Itaipu me extasiou com sua grandiosidade, e as Cataratas me ensinaram que a beleza pode ser estrondosa.

Em Laguna, pesquei tainha com os botos — uma dança ancestral entre homem e natureza. No rio Tubarão, procurei o que não havia, e em Florianópolis mergulhei nos costões, nos mariscos gigantes, nos pilares da ponte Colombo Salles. Cada mergulho era uma história, cada peixe uma lembrança. Naveguei o estreito da Ilha de Santa Catarina com o coração leve e saudade do bairro Coqueiro.

Florianópolis, minha musa marítima — daria um livro só para ti.Joinville me encantou com sua elegância discreta, e em Pirabeiraba, os sabores alemães me fizeram viajar no tempo. O café do Hotel Glória em Blumenau? Um abraço quente da infância. Esqueça a Oktoberfest — as melhores festas eram nas quermesses das igrejas, onde o riso era genuíno e o amor comunitário.

Em São Vicente, vi o futuro passar diante de mim: um jovem negro de mãos dadas com uma loira exuberante. Meu pai, santista roxo, sussurrou: “É o Pelé.” E ali, sem saber, estive diante do rei. A loira não era a Xuxa, mas a cena já era mágica.Trabalhei muito em Campinas, Jundiaí, São Paulo, Ribeirão Preto, Mogi. Cada cidade, um suor. Cada rua, um sonho.Na Ilha do Mel, me vivi um amor breve, mas intenso.Foram apenas quatro dias de carnaval, onde cada instante parecia eterno sob o sol e o som das ondas.Na quarta-feira, as cinzas não vieram apenas nos rituais — vieram também no coração, apagando o brilho do que foi.Mas o que não se apagou foi o arrepio que ainda me percorre ao lembrar da tempestade que varreu a ilha,e da casa antiga, envolta em mistérios, onde o vento parecia sussurrar segredos de outras eras.Até hoje, ao fechar os olhos, sinto o eco dos trovões e o perfume salgado daquela paixão que nasceu e morreu com a folia.

Curitiba me deu amor verdadeiro, filhos e estações em um só dia. A Rua XV, com seu cheiro de café e churros, é uma memória olfativa que me visita nos sonhos. De Joinville a Curitiba, pedalei 131 km pela Serra do Mar — uma travessia épica, onde o cansaço se transformou em glória.No Nordeste, tornei-me homem. Nadei com tubarões em Boa Viagem, namorei em Porto de Galinhas, ralei a pele nos cajueiros de João Pessoa. Recife me deu aventuras e descobertas, e Olinda, com seu Rio Doce, me deu mais peixes e poesia.Maceió, Salvador, Natal, Fortaleza, Aracaju — cada capital me deixou um presente: um sabor, um cheiro, uma lembrança tatuada no coração.No Rio São Francisco, em Canindé, mergulhei em águas quentes e comi o melhor pitú da vida. Vi a dor do sertão, mas também sua força. A fome, os currais eleitorais, os coronéis — tudo isso me ensinou sobre a complexidade da alma brasileira.

Na Amazônia, vivi perigos e milagres. Naveguei o Araguaia e o Tocantins. Um jacaré quase virou nossa canoa, uma piranha levou a ponta do meu dedo. Vi um amigo ser assassinado em Imperatriz, e os mortos de Eldorado dos Carajás me fizeram chorar.

Em Serra Pelada, vi homens cobertos de lama e esperança.Fui espreitado por uma onça na divisa da reserva do Carajás. Dei um tiro pro alto, e ela se foi. Mas os tucunarés e pintados ficaram — abundantes como a vida que insiste.

Em Xinguara, enfrentei estradas de lama, igarapés e perigos. Levava dinheiro vivo para pagar produtores de leite. Protegido por Deus e por um homem sombrio, perigoso e dispostos segurança armada. Atravessava igarapés a nado. Quase pulei na cabeça de um jacaré. Rimos, eu e ele, do susto compartilhado.Palmas me surpreendeu com sua beleza planejada. As Serras Gerais me chamam de volta. A Belém-Brasília me mostrou o Brasil profundo — caminhões furados de bala, histórias de sobrevivência.Brasília, a capital, não me tocou. Monumentos sem alma, um lago sem poesia. O sonho de Niemeyer e Lucio Costa parece ter se perdido entre gabinetes e privilégios. Onde a corrupção e o normal.

Em Rondônia, vi florestas virarem pastos. Vilhena me fez pensar: e se eu tivesse aceitado aquele convite há 35 anos? Teria sido um desbravador?No Mato Grosso, conheci os Xavantes — gigantes de força e dignidade. A Serra do Roncador, com seus mistérios e lendas, me fez sonhar com mundos subterrâneos e passagens secretas.

Minas Gerais, meu porto seguro. Terra que me adotou, onde criei filhos e vi netos nascerem. Minas são muitas, mas todas acolhem com fé e pão de queijo. Aqui finquei minha bandeira, achando que a jornada havia terminado. Que engano doce — continuei a andar, mas agora com um lar para voltar.

Hoje, aos 65 anos, olho para trás e vejo uma vida vivida com intensidade. Esse resumo é muito breve e superficial. Agradeço a Deus todos os livramentos, dei muito trabalho a meu anjo da guarda.

Não me arrependo do que fiz — só do que deixei de fazer. E se pudesse, faria tudo de novo. Com o mesmo brilho nos olhos e sem medo de recomeçar a mesma sede de mundo.

Sandro Nery Lehmkuhl- 03/11/2025

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