Sob(re) um pé de mexerica

20 de junho de 2016 11:13 4195

Junior não recebeu seu nome como herança de pai. Sua derivação nada tinha que ver com estirpe familiar. Sua mãe havia lhe outorgado o nome por condição do batismo. Quando chegou ao mundo, Juninho tivera que enfrentar dificuldades no parto, em pleno mês de junho, no meio de um rincão mineiro onde, na melhor das circunstâncias obstétricas, as parteiras eram os principais suportes físicos e emocionais. Ouviu assim a história, e assim lhe bastava o entendimento.
A coincidência aqui é que o fato que se recorda se passou no mês de junho, no dia em que Juninho arrematava dezessete anos de existência nesse plano. Seu primeiro dia de lida na colheita de mexerica foi nesse peculiar domingo, por volta das sete e meia da manhã – outono, mas com cara de inverno ardido dos ‘brabos’. Imagine o nevoeiro úmido e gelado, que conservava a folhagem molhada, e os frutos, alaranjados pelo amadurecimento, bastante brilhantes. Nessa frialdade, as pontas dos dedos se endureciam… molhava-se o rosto – mais ou menos protegido por uma touca ilustrada com o emblema do seu time de coração –, o peito invadido pelas galhas, e também os braços, do cotovelo às luvas.
De início, com gestos expansivos como se lhe faltassem as palavras dizíveis, o dono do pomar dava os comandos à turma, quanto aos tamanhos dos talos que deveriam ser mantidos nas frutas, ao diâmetro daqueles refugos que não podiam entrar nas caixas. Depois disso, cada um com sua tesoura, sacola e escada nas mãos partia para sua rua, sob orientação do turmeiro, torcendo pela fartura daqueles, por hora, seus pés de mexerica.
O grupo de safristas que vinha crescendo a cada ano contava com gente misturada, de vizinhos chegados a completos estrangeiros. Zenão ocupava a rua debaixo, um meio-amigo na rua de cima.
Cerca de dez minutos se passaram quando Zenão ouviu o barulhão, como algo grande que despencava no meio do pé de mexerica até o chão banhado pelo orvalho. Ele desceu de sua escada, já sabendo se tratar de Juninho e tocou ligeiro para o seu lado, com a sacola meiada pendurada no ombro, pra acudir o garoto. Ainda viu o menino se levantar, bater a terra vermelha do peito, dos braços e de cima de alguns poucos esfolados que sofrera na descida entre os galhos. Juninho, que ostentava uma beleza ímpar em sua pele queimada por genética e o amarelo constante do sol, tinha agora a cara completamente branquiada pelo susto. “Merda de galho!” – bradou num misto de vergonha e raiva.
Zenão não perdeu tempo e abriu-lhe logo a cartilha: Antes de entrarmos na casa dos outros, devemos saber onde fica a porta. Você precisa conhecer o pé antes de entrar nele. Temos que rodear o pé… perguntando a ele como e onde cabemos nele. É preciso analisar bem e intuir essa relação. Lembre-se de que você quer seus frutos, há de saber pedi-los. É preciso sentir o pé, interrogá-lo, com disposição e paciência para compreender sua linguagem, seus sinais.
Sua singularidade e estranheza devem ser veneradas… ou você acha que existe um pé de mexerica igual a outro? É quase um esperar ser convidado… Feito isso, chega o momento de mútua confiança, é quando você pode habitá-lo com sua parafernália, de corpo inteiro e com seu desejo.
O que nos autoriza uma trepada segura, demorada e proveitosa, ascender aos frutos mais doces da copa, é nossa humildade e temperança.
Juninho mascava de boca aberta dois suculentos gomos de mexerica, aprumando o corpo esguio, rodeando o pé… enquanto Zenão, da rua debaixo, o via fincar os pés da escada naquele terreno amassado e deitar a ferragem sobre o verde e laranja da tangerineira. Como um Moisés, Juninho fez ver os galhos se entortarem, esgarçando um espaço que lembrava um colo de mãe recebendo a visita de um filho egresso. O pé se descortinava, se expunha às mãos do garoto e seu intento voraz. Se Juninho já era outro depois daquele tombo, o pé todavia se mostrava o mesmo, porém com nova receptividade e beleza. Era sua forma de gratidão a Juninho e sua coragem de aprender e mudar.
Foi possível testemunhar Juninho gritar algo como “eureca!” no meio daquele pomar. Zenão confirmava silenciosamente no tino de sua sabedoria: Não há outro caminho de se aprender a amar, as coisas, uma pessoa ou a natureza.


Henrique Aquino
Psicoterapeuta

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