Dona Maledicência descobriu na última ceia de natal que era portadora do famigerado mau hálito. Na verdade, foi forçada à consciência, disso que negava a si mesma durante anos. Senhora de idade avançada para os adolescidos no século XXI, Dona Maledicência tomou conhecimento de sua moléstia pela boca torta e espumada de Dona Beltrana; sem a menor consideração com o regime público em que ambas se encontravam naquela noite – assim, no bem noitão, entre o “feliz natal” e aquele período depois convenientemente chamado de amnésia.
Na segunda-feira, a senhora foi ter com o dentista antes mesmo do horário comercial avisar seu início no apito da fábrica. Sorte da cliente o doutor ter por sentido de vida o foco no trabalho. A avaliação foi feita de imediato, num preço suave dada à urgência, mas apertado feito o adstringente do caju considerando o resultado: “A senhora não tem nada!” Coitada da velha, frustração e preocupação não faltaram ao seu palavreado fétido.
Tocou dali direto para casa agendar uma consulta com um gastro… ou endócrino, ou pneumo… naquela altura, até um psiquiatra poderia lhe ser útil; quem sabe até prestar acolhimento com uma tradicional receita de antidepressivos.
O Dr. abriu a porta de seu consultório antes de Dona Maledicência sequer lembrar de ter lido sua especialidade na lista dos médicos disponíveis. Alguns minutos de conversa até o diagnóstico: “A senhora tem prisão de ventre.” “O que?!” “Na cabeça.” “Como assim?!” “Vou explicar, mas preciso que preste bem atenção. Suas conexões neuronais tornaram-se deficientes ou com menor fluxo e você ficou com ideias constipadas, que exigem um esforço muito grande na hora de raciocinar e falar. A senhora precisa reconhecer que existem limitações e estreitezas no seu modo de pensar e agir. Provavelmente a senhora há muitos anos parou de se inquietar quanto à veracidade do que acredita ter como certo e errado na vida, não é? “Sim!” – bradou a bocarra catinguenta – “já tenho idade suficiente pra saber…” “Pois é, Dona Maledicência, mas a senhora esquece que a pessoa que goza de boa saúde não é aquela que aprendeu a curtir a vida, mas aquela que aprendeu no curtume da vida. Nascemos de couro cru, que demanda curtimento, um processo que não para em nenhum de nós, independente da idade. Mas a senhora, por certo, está tão cheia de “verdades” que se tornou… enfezada… isso mesmo, cheia de fezes! Duvidar ajuda na oxigenação do cérebro, mas no caso da senhora… os neurônios já estão no estágio avançado da gangrena.
Complacente e determinado na cura, seguiu o Dr.: “Veja, minha senhora, aposto que fica exigindo da vida uma plena felicidade e alegrias, mas não abre mão da segurança – essa “bengala” que a senhora acredita te proteger e te auxiliar pelo caminho, mas que por certo lhe custa a dignidade e a elegância do caminhar a vida. A senhora tem tanto medo, é tão rígida, tão preocupada com o que o outro vai dizer, segura tanto a sua opinião, se orienta pelos tiranos como se fossem homens de verdade, esconde atrás de máscaras de tímida e reservada… Cabisbaixa, respirando mal e sem ver as coisas de perto, num perto que se deixa sentir o cheiro do que seduz… resultado: resseca o pensamento, a curiosidade fermenta e vira preguiça, e todos os demais órgãos vitais se transformam em depósitos de sentimentos e emoções não expressas. A senhora azedou por dentro, Dona Maledicência; consequentemente, as palavras que saem da tua boca se restringem em lições de moral ou fofocas e difamações. Ou seja, toda forma de palavrão que transforma essa boca num bueiro, cujo fedor só atrai urubus de orelhas em pé.”
Com bom tom de respeito, o Dr. primava sempre pelo diálogo franco e aberto com os pacientes: “Por exemplo, a senhora segura merda na cabeça igual segura dinheiro no bolso, não é verdade? “O senhor tem ética profissional, né Dr.?… algumas pessoas me chamam de avarenta mesmo…” – lamentou a onça de bafo. “A senhora é incapaz de se soltar, em qualquer situação. E também se borra (veja a ironia) de ter novas experiências, de mudar de ideia… prefere achar lindo seus hábitos maniados e acredita piamente que lhe caem como nobreza singular, se fazendo o tipo sistemática. Por causa desse seu medo… O medo leva ao mal, Dona Maledicência, e, no caso da senhora, a esse “mau” também. É grave.”
Com ânimo no dizer, seguiu o Dr.: “Precisamos tratar disso urgentemente. A primeira coisa a fazer é reconhecer sua mediocridade existencial. É preciso combater a doença e não esse sintoma pútrido. O enxofre que exala dessa boca indica o inferno que existe dentro da senhora. E aqui está o caminho da cura dessa halitose: A senhora precisa parar de se atentar apenas à superficialidade e inutilidade das coisas, como cuidar da vida alheia. É preciso começar de imediato a cuidar da sua própria vida – no início a senhora vai achar meio estranho e sem sentido, mas não desista, é assim mesmo. Suspenda algumas fronteiras; admita e solte seu lado expressivo, ao invés de tentar petrificar sua vida exteriorizando sua inveja aos diferentes que gozam de boa saúde. Aceite a corrente da vida – tudo flui, tudo é passageiro – e solte-se. Mudar não é fácil, Dona Maledicência, mas se a senhora não mudar irá antecipar sua morte… vê os sinais?”
Caneta e receituário na mão: “Vou lhe passar dois remédios e com essa dosagem mais alta: “Vergonha na cara”, para te ampliar a consciência e perceber toda sua miserável forma de pensar e agir; e “coragem”, para a iniciativa das mudanças necessárias. A senhora pode misturar com bebida alcoólica sem problemas; e lembre-se que em situações de descontração a reação química é potencializada. Pode e deve tomar sol, mas evite ao máximo nesse momento a companhia de gente tóxica e com seu mesmo tipo de doença… Vai na fé, Dona Maledicência, e trate de ser feliz esse ano, tá certo?! Nada de papagaiar “feliz ano novo” aos outros com esse sorriso de hiena faminta. Pregue menos e seja mais. Um abraço.” “Deus lhe abençoe, Dr.!” “A senhora primeiro.”
Por Henrique Aquino