No Brasil, o dia 27 de agosto é considerado o dia do psicólogo desde a Lei Nº 4.119, criada em 1962 para organizar a formação científica e a regulamentação da profissão no país.
Convenhamos, aniversário sem comemoração e reflexão passa como uma data qualquer. E uma boa reflexão não tem nada a ver com divagações ou viagens de pensamento. Refletir aqui tem o sentido de se colocar diante do espelho, sem roupas, maquiagem ou qualquer tranqueira que atrapalhe a gente a se enxergar de uma forma mais franca. No caso do terapeuta, considerando que a sua ferramenta de trabalho é sempre ele mesmo, a atividade reflexiva se apresenta como imperativo moral, e não simplesmente uma atividade intelectual.
O momento político pelo qual passa a sociedade brasileira deixa exposto algumas de nossas tristes marcas socioculturais e dentre elas as fissuras da desigualdade como selo da nação. Isso interessa a psicologia porque os aspectos socioculturais de um país são fundamentais para a compreensão do adoecimento de seu povo, principalmente em situações de crise. Nesse sentido, no que se refere ao campo da “psicologia brasileiramente situada”, entendemos que é dever do profissional debater sim com profundidade acerca do que está em jogo e situar suas práticas, métodos e teorias dentro deste contexto específico.
Houve um aumento significativo dos cursos de psicologia no país. Obviamente esse aumento quantitativo não foi acompanhado pelo caráter qualitativo. A formação ainda é aquela que enche a mochila do estudante de paradigmas idealistas e conceitos teóricos pomposos. Quando vai para o mundo do trabalho, o profissional leva toda essa parafernália que só serve pra embatumar seu ambiente e ajuntar pó. Quer dizer, dessa forma uma grande parte de psicólogos simplesmente sustenta em sua práxis o mito da universalidade do saber psicológico.
Os muitos diferentes saberes “importados” pelos cursos brasileiros vem, portanto, de outras culturas, foram escritos por outras subjetividades, possuem outras questões em foco; obviamente porque pertencem a outros tempos, outros lugares, outros valores. A transposição acrítica de conceitos de outrem só garante o distanciamento da nossa própria realidade, da percepção das reais demandas que chegam até nós. Se o conhecimento aprendido pertence a “outro contexto”, como pode o terapeuta ajudar quem lhe recorre aqui e agora, em uma OUTRA SITUAÇÃO? O ser não é uma entidade absoluta que vaga por aí. O ser aqui referido tanto pode ser um país, um grupo ou uma pessoa. Ele é, contudo, um ente, possui um corpo, está em situação, contextualizado, pertencente a uma História própria.
Mais do que isso, o ser pertence a uma história maior e com lados bem definidos, há séculos. Continuamos a importar os pensamentos de autores, filósofos, teóricos, (seres) estrangeiros, que pertencem a uma cultura de valores que no passado (?), olhou para os verdadeiros donos das terras ameríndias como um povo cujo modo de ser-aí poderia ser desqualificado, explorado, executado, catequizado, vestido, corrigido, escravizado, “educado”… em nome de uma ética que atende a quais valores de “civilização”? Um olhar colonizador, dominador, que de tão branco, fez homogeneizar e desqualificar toda musicalidade, espiritualidade e cores do “axé” brasileiro. É desse lugar, dessa forma de olhar a realidade, que nos valemos enquanto terapeutas para acolher e empoderar as pessoas que nos pedem ajuda? Pessoas herdeiras do outro lado da balança dessa mesma história? Porque a história testemunha: ao mesmo tempo em que se afirmou a existência de seres que “pensam e logo existem”, também se criou outra verdade, vista na prática: Existem seres de outras culturas que “pensam diferente” ou “não pensam”, e desse modo, tanto faz existirem ou não.
Boa parte dos estudantes de psicologia escolhe o curso por acreditar em diferentes ilusões como “ser um curso mais fácil”; “basta ter desejo de ajudar o outro”; “não precisar estudar muito”; “não é de exatas” etc. Ilusão faz parte da vida, mas o problema é que uma grande parcela dos formados sai do curso com a mesma mentalidade que entrou. Quando estes profissionais atuam como terapeutas, também estariam eles ajudando o outro a “encontrar o caminho mais fácil e rápido” para seus problemas? Essa é a orientação ética que embasaria seu trabalho? Outros, com o passar do tempo estão cada vez mais azedados, porque acreditaram na ilusão de que um psicólogo se forma ali na universidade, com cinco anos de in-digestão teórica. Quer dizer, hoje estão arrotando cheiroso “Michel Fucô” na mesma mesa que é servida feijoada.
A formação do psicólogo também peca, por outro lado, pelo exercício de um pragmatismo que utiliza ferramentas de “condicionamento”, ou pela submissão de seu saber em relação a outros saberes “porque esses trabalham com evidências, prometendo alívio rápido de sintomas.” Ora, para quem de fato estamos trabalhando sustentados nesses princípios? A que interesses atendemos quando nos silenciamos diante do consumo abusivo de ritalina pelas nossas crianças? A quem servimos quando somos coniventes com a forma na qual a sexualidade humana é tratada dentro dos espaços educacionais? Em síntese, o cenário demanda uma inserção profissional mais atenta e responsável ao seu contexto, no qual a reflexão preserve seu lugar que é o de revelar o sentido de nossa prática.
Também existem aqueles que acreditam piamente que um psicólogo é capaz de ser clínico sem antes ter talhado suas próprias questões, sem antes ter sido ele mesmo paciente. Ora, quer questão mais interessante como ponto de partida para um trabalho reflexivo do que esse “desejo de ajudar o outro”? Essas três palavras – “desejo”, “ajudar” e “outro” – são conceitos muito caros para a profissão do terapeuta e, justamente por isso, jamais poderiam conservar as mesmas concepções ilusórias construídas antes de seu ingresso no curso. A ampla formação do psicólogo deveria levá-lo a questionar essas razões que o levaram a escolher o curso. A nosso ver, esse desejo demandaria um acolhimento apropriado por parte dos cursos de formação que, todavia, deixam a cargo do indivíduo, em sua terapia pessoal, contribuindo ainda mais para uma fragmentação do (auto)conhecimento. Se tais concepções de existência não estão sendo cotidianamente questionadas e refletidas, o que será que esses terapeutas estão fazendo por aí com todas ilusões intactas?
Cabe lembrar que as principais questões sociais estão sendo cantadas ou narradas pelos artistas há muito tempo e com melhor afinação e descrição da nossa realidade do que nós “pseudo cientistas”. Mas para entendê-las, para conseguir ouvi-las de verdade, seria preciso que o terapeuta tivesse a sua sensibilidade bem treinada, assim como uma franca abertura para sua cultura popular.
Além da arte, existem produções nacionais, teorias latinoamericanas, perspectivas decoloniais, que descrevem com tanta fidelidade nossa realidade brasileira que parecem “livros ilustrados”, ou seja, até o psicólogo mais preguiçoso poderia ler e entender. Ao invés de usar seu livro na mesa como enfeite ou escudo intelectual. Essas diferentes manifestações de insegurança profissional quando não trabalhadas se tornam patológicas: o medo transforma o “desejo de ajudar o outro” em “relação de poder”. Portanto, é preciso rever a grade curricular e o tempo desperdiçado com o esmiuçar conceitos distantes da realidade em que se atua, sob pena do terapeuta ser tragado pelo sentimento de desamparo e a falta de referência segura para sua prática quando em seu campo de atuação. Cabe lembrar o trabalho de Paulo Freire, por exemplo, que teve esse mérito de “incluir a realidade popular brasileira às suas teorizações sobre educação.” Curioso é notar que esse conhecimento produzido aqui dentro, coisa nossa, nem sempre tão valorizado, é exportado.
A atenção aos aspectos socioculturais e suas diferentes expressões não é especificidade da psicologia social ou daqueles psicólogos inseridos no campo das políticas públicas. Estamos falando de uma busca por pontos de uma identidade mais ampla (consciente dos riscos e dificuldades dessa busca), que deve se fortalecer desde a graduação acadêmica, a partir de uma “formação brasileiramente situada”. Uma identidade que se revela por vezes frágil justamente porque se afirmou numa linguagem distante, que não pertence ao seu povo.
Por fim, não é certo dizer que teoria e prática sejam coisas diferentes. Não poderiam ser de forma alguma. A questão é que as teorias devem antes se sustentar na realidade, e não o contrário. Daí a necessária relativização dos conceitos que se emparelham com a filosofia de um lado e com a cultura pelo outro. Muitos terapeutas, a pesar de certo esforço por parte desses profissionais quando inseridos no campo das políticas públicas, por exemplo, ainda têm se mostrado completamente alheios e distantes das questões concretas do terreiro que pisam. Ou seja, “pisa na terra, mas não a sente, apenas pisa… apenas vaga…”.
O problema, portanto, talvez seja mais básico: “o psicólogo precisa recriar sua prática dentro de um arcabouço que esteja de acordo com a realidade sociocultural brasileira.”
Por Henrique Aquino
Psicoterapeuta