“A depressão não é problema seu”

13 de março de 2018 14:23 1785

Dentro de uma linha de pensamento bem aceita entre muitos, a depressão é vista a partir de um ponto de vista biológico e individual, cujo fenômeno pressupõe uma alteração bioquímica no cérebro, com o desequilíbrio de neurotransmissores e que, portanto, seria corrigida com auxílio de terapias medicamentosas. Estas estratégias, no entanto, são paliativas e visam tapar o sol com a peneira se irmos a fundo à raiz do problema. Também com isso, é cada vez mais precoce e natural o acesso das crianças às drogas para tratamento de depressão, insônia, hiperatividade…
Um perfil hegemônico de psicólogos e outros profissionais também sustentam seu trabalho nesse viés – sua técnica “é moderna”, “cientificamente comprovada” e “os efeitos podem ser vistos nas alterações de exames”. Revistas de “vulgarização científica”, com conteúdo repleto de “classificações” e as “últimas descobertas” provavelmente estão nas antesalas de seus consultórios, ou na estante como guias de cabeceira. Tristes tempos! Não à toa a depressão e suas consequências, como a tragicidade do suicídio, tenham se transformado no mal do século. Seu atual crescimento acelerado, no fundo, é um sinal, ou, sinais da “doença” de nossa época, que reflete a desesperança causada pelas condições cada vez mais desumanas e insustentáveis em que avançamos cotidianamente.
Se o corpo é uma realidade inquestionável, cabe lembrar que essa realidade possui uma consciência que não se limita a uma inteligência racional ou “cerebral”. O corpo é um “sistema vida” muito mais amplo e, principalmente, está atravessado pela estrutura social. Nesse sentido, a depressão, e qualquer outro mal que acomete o ser humano nessa proporção epidêmica, deveria ser tratada como um mal estar da nossa civilização. Os indivíduos que adoecem – e no caso da depressão, os milhões de indivíduos que estão adoecendo – pertencem a uma cultura que já deu evidências de sua crise.
Os fatores principais para a decorrência da depressão ultrapassam um desequilíbrio químico cerebral, portanto. Essa dor é uma resposta aos acontecimentos do em torno. A depressão não pode ser vista, como um fracasso, como uma doença “do indivíduo”. A depressão possui múltiplos elementos e depende de cada história, do ambiente familiar e, além disso, o fator social é determinante. Vivemos em uma cultura narcísica, imagética, competitiva e cada vez mais violenta: exército fazendo batida em mochilas de crianças, programas televisivos que espetacularizam o sofrimento alheio, bullying, metas de trabalho excessivas, páginas inteiras de jornais verborrágicos sobre ações policiais, linchamentos, deliberação legislativa sobre porte de armas, fake news… Como não se “deprimir” nesse mundo?
A depressão está relacionada com a forma como levamos nossas vidas atualmente. É dessa verdadeira causa que a pessoa precisa tomar consciência e buscar desenvolver recursos para lidar com o mundo que a cerca. “Tomar consciência” é muito mais que saber ou conhecer “mentalmente”. Se fosse simples assim, bastaria ler um ou outro artigo sobre o tema, ou reportagens com informações claras para se libertar. A conscientização permite a pessoa uma compreensão mais ampla de sua própria existência, das habilidades e capacidades de seu sistema sensorial, motor e intelectual. Essa consciência se mostra libertadora porque implica maior orientação interna e mudanças significativas na forma como a pessoa faz contato consigo mesma e com os outros.
Tomar consciência em um mundo tão alienante e ansiogênico não é tarefa fácil, todavia. Principalmente porque significa viver uma forte experiência de “estar presente” aqui e agora. Não se limita no “aproveitar o presente” (esta expressão no fundo é um imperativo externo), trata-se de “estar/ser presente”. Dizemos “experiência” porque ela é uma realidade “vivida” por aquelas pessoas que conseguem caminhar com maior orientação interna, ou autosuporte, e por isso estão menos propensas a transtornos depressivos. Essas pessoas, ao contrário daquelas mais direcionadas pelo exterior, têm comportamentos e atitudes que não são facilmente influenciadas pelas mudanças superficiais de seu ambiente. A estabilidade delas está respaldada na firmeza do autoconhecimento e aceitação de si. São pessoas que aprenderam a andar sobre os próprios pés, mas que não são egoístas, porque através do autoconhecimento, à medida que revela sua condição humana, esta também se faz visível no outro, quando compreendido por detrás de sua máscara social.
O interesse genuíno por sua experiência vivida inclusive faz emergir uma consciência mais ampla que o envolve, sobretudo, em causas humanitárias, na luta pelo bem estar do próximo ou de um grupo. Ou seja, a pessoa com maior orientação interna, maior consciência de si, é também aquela que possui maior amplitude de sua co-existência, pois o ego deixa de ocupar a centralidade da experiência à medida que se volta a uma maior sensibilidade em relação à vida e menos aos objetos. E é preciso pensar os caminhos para a construção de uma consciência coletiva, pois é no mundo que também se encontra suporte para as transformações necessárias, nas relações de identificação e parcerias. É na intenção de um “nós” que a percepção do mundo se converte, no próprio mundo, em ações práticas que buscam a condição do conjunto.
A diferença da pessoa com orientação interna e externa pode ser definida também a partir da distinção de onde cada uma delas coloca sua fé. Essa fé está assentada na experiência do “sentir”. Quando se age com base em um forte sentimento ou emoção eis a experiência da fé – fé na realidade vivida, nos sentimentos e em si mesmo. Porém, a pessoa de orientação externa está sempre muito atenta “às tendências” e possui forte inclinação a dependência, inclusive emocional. Sua fé não está em si mesma, mas no outro, e com isso arrisca-se a constantes desapontamentos. Está sempre a procura de algo fora de si para acreditar e preencher uma falta que mal sabe dizer sobre ela. Suas ações, que na superfície parecem envolvidas e identificadas com seus objetivos pessoais, no fundo esconde expectativas de reconhecimento, amor, aceitação e apoio de alguém. A pessoa que desenvolve autosuporte, todavia, é capaz de encontrar satisfação nas próprias respostas que dá ao mundo e, apesar de cair com a falta de reciprocidade deste, levanta.
“Só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos”. Logo, estamos sujeitos a depressão toda vez que procuramos formas de realização fora de nossa humanidade, toda vez que desrespeitamos nosso sistema vida em prol do consumo e dos lucros e toda vez que buscamos paliativos para nos adaptarmos socialmente. Seguir uma vida com objetivos irreais, distantes da experiência humana, é como assistir reprises de um drama angustiante torcendo por outro final. É uma questão de tempo até a ilusão se quebrar. É uma questão do “nosso” tempo a depressão se espalhar!


Henrique Aquino – psicoterapeuta

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