A Minas Caixa em Perdões

5 de abril de 2021 11:16 375

Em 1968, fui trabalhar na Caixa Econômica do Estado de Minas Gerais, agência de Perdões (MG). Curiosamente não era concursado. A minha contratação se deu pela indicação do Sr. Horácio Barbosa, a quem eu sou muito grato, ao Sr. Sebastião Guido, gerente da Caixa, que correndo os riscos inerentes à sua decisão, contratou-me como contínuo. Como eu receberia o meu salário para trabalhar com eles? Naquela época, na agência havia somente quatro funcionários: Sr. Sebastião Guido – Gerente, Mauro Sebastião (filho do Sr. Ivo Luciano) – Subgerente, José Frangueiro – Caixa e Adair Araújo – Chefe de Serviço. Os quatro combinaram de pagar o meu salário, dividindo-o entre eles. No final do mês, quando recebiam os seus pagamentos, cada um me pagava a sua cota. Às vezes, fico pensando: somente gente muito boa, de um coração enorme, poderia fazer isso. Tiravam dinheiro do próprio bolso para me dar um emprego, corriam riscos administrativos frente às inspetorias do banco e ainda financiavam a Caixa, carente de funcionários. Oro a Deus por eles todos os dias, pois é a forma que tenho para agradecê-los por tamanho desapego.

No meu primeiro dia de trabalho, fui instruído pelo Sr. Tião Guido sobre as minhas tarefas: varrer a agência, espanar as mesas e cadeiras, limpar o balcão e limpar o banheiro. Além disso, eu iria aprender a atender os correntistas, preencher recibos de depósitos, emitir talões de cheques, prestar informações e tirar dúvidas; ajudaria no expediente interno e, principalmente, entregaria avisos.
As agências da Caixa, no interior, funcionavam como um banco de fomento: faziam empréstimos a título de crédito pessoal e financiavam empreendimentos. Possuíam uma extensa carteira de crédito rural para custeios de lavouras, aquisições de gado e equipamentos rurais. Apesar de a agência não ter, naquela época, mais de três mil clientes, sua carteira rural era muito importante.
Hoje, os bancos avisam aos seus clientes sobre o andamento das suas negociações através dos correios, de e-mails e WhatsApps. Naquela época, não. O Mauro emitia os avisos de vencimentos dos empréstimos e financiamentos, em um formulário preenchido na máquina de escrever. Ele dobrava e grampeava o documento de tal forma que aparecia somente o nome e o endereço do cliente. Depois, com uma caligrafia muito bonita, preenchia o livro de protocolo, onde seriam colhidas as assinaturas, comprovando o recebimento pelo cliente. Esses avisos informavam a data do vencimento do empréstimo, as condições de renegociação do financiamento e prestava outras informações.

Um dia, o Mauro me chamou e me disse:
― Hoje, você vai entregar os avisos.
Havia uma montanha deles. Sentou-se comigo e explicou-me, detalhadamente, o que eu deveria fazer. Começou a montar a logística para a entrega, o que facilitaria muito o meu trabalho. Apareceu um cliente para ele atender e a tarefa das instruções passou para o Zé Frangueiro. Na maior paciência, o Frangueiro foi me explicando quem era quem.
― Este fulano, mora na Rua Governador Valadares; este outro na Rua do Cruzeiro – e por aí foi.
Chegou a vez dos “Sebastião Pereira”. Eram muitos. Eu conhecia quase todos pelos apelidos, mesmo assim, separar qual era qual, não era tarefa fácil. E o Frangueiro continuou:
― Este é o Tião fulano de tal e mora na Caridade; este outro é o Tião sicrano de tal e mora na Vila Nova – enfim, enumerou todos.
Quando ele me foi explicar quem era o cliente do último aviso, Sr. Geraldo Tomás Américo Souza, ou Geraldinho Américo, o Mauro já havia terminado o atendimento ao cliente e se juntado a nós. Os dois me explicaram com muita clareza:
― Você desce a Rua Sete de Setembro, atravessa a linha, passa pela venda do Sr. Ivo e, logo em seguida, tem o açougue. Nesse açougue, você entra e pergunta: ― Quem é o Teco-teco? Quem responder é esse o Geraldo.
Saí com o livro de protocolo, os avisos e uma caneta BIC novinha no bolso. Segundo o roteiro estabelecido, comecei lá pelo Rosário e vim descendo a cidade, parando nas residências, lojas ou escritórios, entregando o documento de cada um. Fui muito bem recebido por todos e não tive nenhum problema, nenhuma contrariedade.
À tarde, eu já estava na Rua Sete de Setembro, em direção ao açougue, vizinho do Sr. Ivo Luciano.
Cheguei à porta do açougue e cumprimentei com uma “boa tarde” às pessoas que estavam lá. Lembro-me de que à direita da porta estava o Sr. Joaquim Romão, do outro lado havia outras duas pessoas sendo atendidas, mas não me lembro de quem eram.

Além do balcão, estava o açougueiro. Era um senhor magro, claro, que cortava uma costela de boi com um machado, sobre um toco de madeira. Naquela época, não existiam as serras elétricas e os ossos eram partidos com o machado.
Do alto da minha “sabedoria” e ancorado no sucesso até então obtido, eu perguntei em alto e bom som:
― Quem é o Teco-teco?
O senhor magro e claro parou com o machado por sobre o ombro, olhou para mim com a cara fechada e disse também em alto e bom som:
― Teco-teco é a PQP.
Falou isso com a boca cheia, pronunciando cada palavra por inteiro, sem pressa, e com muita confiança.
Naturalmente, todos que estavam no açougue riram. Só eu e ele permanecemos sérios. Ele com uma vermelhidão no rosto, como se estivesse com muita raiva; eu, provavelmente, branco como uma vela de espermacete.
Minha vontade era de sumir dali, mas e o meu orgulho? Bater em retirada sem nenhum senão, não me pareceu bom. Olhei para ele bem nos olhos e disse-lhe:
― Vou contar isso ao meu pai – não encontrei outro argumento, senão este. E me virei para sair do açougue e ir embora. Aí ele também reagiu e me disse:
― Calma aí, menino. Isso é brincadeira, volta aqui. Eu sei que foi o Frangueiro que mandou você falar isso. Me dê cá o seu livro para eu assinar o recibo.

Limpou as mãos sujas de carne em um pano, que estava sobre o balcão, fez uma cara de riso, pegou uma caneta dele e assinou o recibo do aviso. Entreguei-lhe o documento e fui embora, sem enxergar direito o caminho de volta nem as pessoas que passavam por mim. Voltei muito contrariado para a agência e, chegando lá, encontrei os quatro colegas me esperando, curiosos para saber o que havia acontecido. O Sr. Tião Guido riu da história, mas comedidamente; a Adair solidarizou-se comigo, mas o Mauro e o Frangueiro riram muito.
Bem, passado o desastre, o Sr. Geraldinho tornou-se meu amigo. Tratava-me com respeito, amizade e cortesia onde quer que me encontrasse.
Assim como ele, fiz grandes amigos entre os clientes da Minas Caixa.
A agência de Perdões cresceu em clientes e número de funcionários. Primeiro veio o Diomedes, de outra agência; depois o Zezinho, filho da Dona Chata do Celso, que demorou pouco e foi-se embora. Mais tarde, chegaram outros três funcionários recém-concursados: o Luiz, de Nepomuceno, que ficou pouco tempo, a Alcida Alvarenga, que foi a minha primeira professora de música e acordeom, e a Consuelo, a minha amiga Sula, de Ribeirão Vermelho.

Aproveito esta oportunidade para demonstrar a minha gratidão a essas pessoas maravilhosas, com as quais eu trabalhei no início da minha vida profissional: Sr. Sebastião Guido (em memória), José Frangueiro (em memória), Zezinho (em memória), Mauro, Adair, Diomedes, Alcida e Consuelo. Foram as minhas preceptoras. Aprendi muito com elas. Deus as abençoe.

Vicente Castro
Belo Horizonte (MG), 08/11/2017.

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