Na primavera de 1947, a praça Dr. Zoroastro Alvarenga em Perdões exibia suas roseiras em flor, enquanto um ventinho suave ziguezagueava pela tarde. O local, homenagem ao primeiro munícipe a ocupar um cargo de Deputado Estadual (1906 a 1910), era refúgio para aqueles que queriam escapulir do cotidiano e refletir. Entre as sombras das árvores centenárias, uma mulher lentamente caminhava. Malgrado os passos leves, uma angústia espessa pesava em seu peito. Ela ostentava a expertise de quem conhecia os mistérios da noite; portanto, escondia sonhos e reprimia terrores. Conhecida pela formosura, seu segredo agora medrava aos olhos alheios: com 22 semanas, a protuberância ventral delatava a gravidez. Ao estacar diante de uma rosa escarlate, se convenceu: carregava em si uma outra mulher.
Nascida de parteira, em um mundo tumultuado, mas, ainda assim, mundo, a infante buscou caminho entre as notas do piano, o som de fanfarras e o amor paterno. Caçula dentre cinco irmãos, desde cedo, fora alvo das miradas do povo. Ora curiosas, ora inquisitórias, ela não compreendia o motivo das expressões adultas. Na casinha habitada com a mãe, gargalhadas abafadas, gemidos profundos e vozes masculinas preenchiam as madrugadas, ao mesmo tempo em que a criança criava mundos fictícios para se esconder.
O pai, chefe de outra família, nunca deixou de ser um encanto para a menina. Apesar de todas as adversidades, ele a ensinava que “o amor existe!” Porém, a dura realidade vivendo com a mãe – uma criatura controversa, beligerante, objeto de disputa entre homens poderosos e agressivos, cobiçada e lasciva em igual teor – teimava em pôr à prova as lições ministradas. Conhecendo somente uma existência conturbada, a garota de olhos grandes cresceu, tentando proteger a mãe das próprias escolhas. Duas cicatrizes (uma no joelho, outra no braço) são amargas lembranças de golpes recebidos ao tentar defendê-la de sujeitos que cruzaram a porta de sua movimentada casa.
Após se formar, nossa protagonista fundou uma escola para crianças. Construiria algo diferente, plantaria sementes de esperança em solo árido. Como professora do ensino básico, ela acompanhou gerações e gerações de crianças: algumas cheias de potencial, outras perdidas para a crueldade humana. E, apesar de tudo, havia o piano! Quando seus dedos tocavam as teclas, ela divisava o rosto do pai, sentia sua presença. A música era uma ponte para uma dimensão mais leve, palatável, onde a dor parecia suspensa e o passado se mostrava apenas um ruído distante.
Resoluta em suas decisões, grande parte de sua vida adulta foi repleta de intensidade. Baliza de fanfarra, chamou a atenção dos homens com seu carisma e, por um tempo, dançou a valer. Nisso, no vai e vem de corpos, conhecera um rapaz tão envolvente quanto enigmático, o qual se aproximou com promessas silenciosas e um olhar esquivo. Movida pela paixão e pelo desejo de viver tudo ao máximo, ela mergulhou de cabeça, sem perceber que, por trás da máscara, ele carregava seus próprios fantasmas.
Passeios, beijos e projetos a dois não foram capazes de conter palavras severas, ciúmes bobos e dissimulados que logo se converteram em agressões jamais cogitadas por ela, em vista de sua biografia. A covarde violência masculina não feriu apenas sua pele, mas algo mais valioso: a confiança, o amor-próprio, a fé de que a história ocorrida com a mãe não se repetiria com ela. O peso dessa decepção moldou sua descrença no amor romântico. Ao escolher seu enxoval, hesitou ao tatear os tecidos delicados, como se algo a puxasse de volta ao passado. Cada peça simbolizava parcela de um futuro que ela temia. Então decidiu: não se casaria. Não com ele ou alguém que fizesse do amor uma prisão. Essa lembrança foi suficiente, para lhe tirar qualquer ilusão sobre os homens, fria como Turandot.
Hoje, próxima de seu 78º aniversário, reflete sobre o passado e afirma que não faria nada diferente. Ela optou pela música que restava. Aquela que não feria, que não aprisionava, mas libertava. O som do piano reverbera pelo seu lar, preenchendo o vazio deixado por amores que não se concretizaram. Suas mãos, firmes e resolutas, encontram nas teclas uma paz que o mundo nunca lhe ofereceu. Enquanto o vento da primavera balança as rosas na praça Dr. Zoroastro Alvarenga, ela sabe que, no final, moldou seu próprio caminho — não o imposto pela sociedade, mas aquele onde a dor e as cicatrizes deram lugar à melodia que sempre a acompanhou.
Maxmiller Hübner