Se por um lado o tema “drogas” é antigo – considerando inscrições pré-históricas que registram, por exemplo, as recomendações dos egípcios ao ópio como analgésico e calmante –, por outro lado o “problema das drogas” é um assunto relativamente novo e já bastante viciado por sinal. A separação entre drogas lícitas e ilícitas se dá paralelamente à consolidação do saber médico e o monopólio da prática de medicalização. Além disso, a criminalização do uso de determinadas substâncias é contemporânea da descoberta dos remédios/fármacos produzidos de forma científica em laboratórios. Mera coincidência? Não se lembrarmos que vivemos na era do consumo, lucro e poder. Perder de vista essa dimensão histórica numa discussão atual sobre o problema das drogas é consequência do entorpecimento causado pelo consumo excessivo dos discursos morais sedimentados. Há quem ganhe, e muito, com essa nossa preguiça de pensar.
A “guerra às drogas” não alcançou e nunca irá alcançar seu objetivo: eliminação ou redução do consumo de substâncias proibidas. Isso porque a “guerra” se camufla de ilusões e hipocrisias. A morte e a prisão dos envolvidos na cadeia produtiva são penalidades aplicadas apenas a uma parcela específica de seus membros, quais sejam os que ocupam a base da pirâmide hierárquica: pobres, jovens, negros (“aviões”, “mulas”, pequenos traficantes etc.). Exemplo disso pode ser visto no escândalo de 2013 com a apreensão de um helicóptero com 445 Kg de cocaína. Alguém sabe dizer o que aconteceu com os envolvidos? Sim, o proprietário do helicóptero, filho do senador Zezé Perrella, ex-deputado estadual de Minas Gerais Gustavo Perrella, foi absolvido pela Polícia Federal e, no mês passado, nomeado ao cargo de Secretário Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor. Agora, imagine se esse sujeito não tivesse “pedigree”, qual seria o tratamento? Ilusão pensar que essa guerra é contra as drogas! Ela é, certamente, contra uma camada pobre da sociedade capitalista vista e tratada como perigosa e descartável.
Por falar em cocaína, vamos à dimensão hipócrita dessa guerra. Você sabia que a Ritalina é quimicamente similar à cocaína? Ritalina é uma droga indicada para crianças que recebem diagnóstico de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), que gera dificuldades no aprendizado escolar. A medicação promete resolver esses problemas das crianças vistas como “agitadas” e por isso ganhou o apelido de Droga da Obediência. Todavia, poucos pais e escolas se questionam sobre os fatores escolares e familiares que contribuem para tais agitações e dificuldades de aprendizagem. O Brasil é o segundo maior consumidor mundial desse “tarja preta”. Ano passado foram quase 2 milhões de caixas vendidas. Seu uso indiscriminado e desnecessário pode trazer efeitos colaterais graves em curto e médio prazo e sua eficiência é questionável. Mas isso é uma questão muito pouco discutida.
Quanto à “obediência” supostamente alcançada pelo medicamento, cabe lembrar que esse resultado se assemelha a um “efeito zumbi”, matando a vitalidade da criança, bem como sua criatividade. Michel Foucault já havia alertado: “o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica”. Esse controle tem início na infância, na medida em que o modo de ser-criança tem sido visto como um modo de ser-adoecido. Se é visto como doença, é preciso tratar/curar e nisso os medicamentos se apresentam muito sedutores. Além disso, os psiquiatras recebem comissões pela prescrição desses remédios e a indústria farmacêutica fatura alto com sua venda. Enfim, se uma droga desse nível pode ser um produto comercializado legalmente e tão consumido por nossas crianças, está correta a letra da música: “a farmácia é uma biqueira com CNPJ”. Que inaugura uma atrás da outra, não é verdade?
Esses são fatores importantes para se pensar o aumento descabido e surreal de diagnósticos e receitas no Brasil, e por outro lado nos assustarmos com a elevada taxa de mortalidade dos nossos jovens brasileiros envolvidos no mundão do tráfico. É somente na peneira da reflexão crítica que se pode garimpar as ilusões e hipocrisias de uma guerra que se mostra beneficente de uma “classe superior”, e contrária à própria vida de alguns miseráveis tratados como subumanos.
Por Henrique Aquino – Psicoterapeuta