JÁ QUE É PRA FALAR

27 de junho de 2023 13:14 1542

Escrevo porque é a forma que melhor consigo expressar aquilo que vejo no mundo. Um mundo que carrega tragédias e dores, mas também um mundo que é bonito, com suas delicadezas e recomeços.

Já que é pra falar é uma ideia que nasceu há 6 anos.

Naquela época, conheci uma senhora chamada Maria, que pediu para que eu a ensinasse a ler. Nosso convívio me fez enxergar o que antes não percebia: o quanto somos cercados por histórias que merecem ser contadas. Não histórias de telejornal, de algo extraordinário que aconteceu no centro da cidade, mas histórias de gente comum. De gente como Maria, que trouxe na esperança de aprender a ler aos 56 anos, um novo sentido aos dias.

Acredito que o cotidiano tem a sua beleza e que é nos detalhes da rotina que acontecem as melhores histórias. Essa coluna é sobre isso.

E também sobre pensamentos e ideias que me cercam a partir deste emaranhado de acontecimentos que dão vida aos nossos dias.

Já que é pra falar é um espaço para pensarmos sobre o que faz de cada existência, única, nesse recorte específico de tempo e espaço.

Sejam muito benvindos.

Renata Souza é jornalista, educadora e produtora de conteúdo.

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Aberto há mais de 50 anos, comércio é parte da memória de Cana Verde

Estabelecimento foi um dos primeiros a oferecer vestuário e itens em geral na cidade

 “Todo mundo tem a sua história, né menina?”

Com essa frase Tonho Rosalino iniciou nossa conversa, atrás do balcão do número 250, da Rua Joaquim Cipriano, lugar que ele conhece como ninguém. Nascido Antônio Carvalho Nunes, é pelo apelido que ficou conhecido em toda a cidade.

A história que ele iria me contar tem seu ponto de partida no Distrito do Cerradinho. Foi lá que, em maio de 1945, Tonho chegou ao mundo, sendo o mais velho de sete irmãos e tendo como primeira morada uma casa coberta de sapé, num tempo em que a vida era bem mais simples e dura.

Desde pequeno, trabalhava com o pai na plantação de arroz. “No início, o trabalho era de segunda a sábado. Depois, meu pai deixou que ficássemos com o sábado”, conta.

Aos 17 anos, havia juntado umas boas economias e decidiu tentar um novo ramo. 

Embarcou pela primeira vez no ônibus com destino a São Paulo, acompanhado de dois conterrâneos. O objetivo era ir nas regiões com os comércios mais populares da cidade, como Brás, 25 de Março e Bom Retiro, e comprar de tudo um pouco para revender no interior.  Com a mala cheia de saias, camisas, cintos, meias e outras peças de vestuário, retornou a Cana Verde, organizou os itens e saiu oferecendo-os de porta em porta.

Naquela época, Tonho não imaginava que, depois de mais de 50 anos, seu nome ainda seria conhecido como referência no comércio da cidade.

Em 1972, decidiu que era hora de abrir um espaço próprio. Inaugurou a loja num cômodo pequeno, na Praça Nemésio Monteiro, onde além do vestuário, clientes encontravam material escolar, aviamentos, balas e doces em geral – o que fazia a alegria das crianças na saída da escola.

“Ficava lá das sete da manhã as oito da noite. Às vezes, levantada bem cedo e já havia uma fila de pessoas me esperando na porta”, relembra.

Dez anos depois, mais experiente e com uma clientela fiel, comprou o terreno em frente e começou a construção de um novo espaço, que ainda hoje abriga o comércio.

Ao lado da esposa, dona Cleuza, com quem divide uma vida inteira, Tonho Rosalino permaneceu atrás do balcão por 32 anos, até que o momento da aposentadoria chegou.

“Construí a minha vida, me estabeleci e formei meu filho para médico (sic). Tudo com a loja. Se eu pudesse, agradeceria dia e noite a Deus. Tudo o que pensei em fazer, deu certo”.     

Depois de três décadas de trabalho, indo à São Paulo duas vezes ao mês para repor mercadoria e passando o restando dos dias no balcão, Tonho passou o comércio da família para a filha mais nova.

Enquanto conversávamos, o movimento era constante. Alguém entra pedindo um pano específico para costura, outro um utensílio doméstico, até que o sinal de saída da escola toca e a crianças começam a chegar animadas pedindo salgadinhos e doces.

A dinâmica de sair da escola e passar por lá é mantida a gerações. Dificilmente, alguém que cresceu em Cana Verde a partir dos anos 80 e estudou na Escola Estadual José Esteves de Andrade Botelho não tem lembranças de um doce comprado no fim da aula.

“Esses dias um vendedor de outra cidade perguntou como fazia para achar a loja quando chegasse em Cana Verde. Respondi que bastava perguntar para qualquer criança que encontrasse na rua”, diz Tonho, com o sorriso de quem sabe que o comércio aberto há tantos anos é praticamente um patrimônio história da cidade.  

Com a aposentadoria, a rotina mudou, embora ainda acorde bem cedo. Depois das orações, é hora de sair para a caminhada de todas as manhãs. Com 78 anos, Tonho também não abre mão da pescaria.

“Vou toda a semana para a beira do rio. Mesmo quando a pesca não está boa, só de estar lá, já acho bom”, conta.

Quando perguntado se tem saudade da rotina da loja, ele diz que não. Explica que trabalhou muito e fez tudo que podia ser feito. Agora com a vida mais calma, mantém um tipo de serenidade que acompanha apenas as pessoas que sabem que a trajetória valeu a pena.

Antes de encerrar a conversa, ele pergunta se pode me mostrar a foto de seu filho com a neta.

Mais uma vez, o rosto se ilumina com o brilho de quem reconhece a história que construí e o legado que deixa na figura dos filhos.

Todo mundo tem mesmo a sua história e numa época em que tudo é substituído num espaço de tempo cada vez menor, a dele permanece, como parte também da rotina dos moradores da pequena Cana Verde.

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