Na lida com os escravos raivosos

3 de abril de 2017 10:38 1969

A democracia radical é aquela na qual alguns valores como igualdade jurídica, social e econômica se efetivam para além do campo do ideal. Para que a democracia forneça seus conteúdos é henriquenecessário um conjunto de práticas características, tais como voto secreto e universal, a autonomia dos poderes, representatividade, liberdade de pensamento e expressão etc. Esses valores essenciais para a democracia, assim como qualquer outro valor, derivam das relações estabelecidas entre os seres humanos. A liberdade, por exemplo, não sendo um bem material, não é algo que pode ser dado, comprado ou guardado e por isso depende de projetos de ação articulada coletivamente. Daí também os riscos de se perdê-la em momentos de crise.
Os valores morais nos servem como insumos para se construir a sociedade e mantê-la em movimento. Entretanto, o fluxo de evolução faz com que determinadas regras de convivência, antes tidas como regras de ouro, percam seu valor em uma circunstância mais atual. Portanto, há um dinamismo inevitável dos valores, uma vez que a sociedade como tudo na vida está em constante mutação. O problema é que isso amedronta a maioria dos indivíduos, pois lhes faltou uma educação voltada para a liberdade, que é o suporte para o desenvolvimento da autonomia e da habilidade para lidar com o novo. Como resultado dessa “falta de educação”, a imaturidade leva pessoas à trocarem o peso da liberdade pela submissão voluntária.
Ser autônomo é um desafio que muitas pessoas não conseguem suportar. Pois implica riscos nas escolhas e angústia pela responsabilidade de decisões, ainda mais decisões com consequências coletivas, que recaem sobre a pessoa mais como um fardo que uma preciosidade. Por isso há tantos que renunciam à liberdade, ao ponto de requererem retrocessos aos regimes autoritários em momentos de instabilidade e incertezas. Típica criança que se assusta com o cachorro e corre para o colo do adulto.
Tal desvio de conduta às vezes nos confronta com a difícil escolha entre romper relações com o “escravo” (alienado e inimigo da democracia) ou educá-lo. Ao que parece, a democracia depende da segunda opção. A necessidade de se educar um cidadão para o exercício da democracia justifica-se pela importância de ensiná-lo a “ler”. Não apenas um texto, mas, sobre tudo, ensiná-lo a ler uma realidade, que é uma tarefa muito mais complexa, pois envolve a prática de atribuir significado ao mundo, ao texto-da-vida. Esse nível de leitura exige uma compreensão abrangente, capacidade de análise, estabelecimento de relações com outras realidades, contextualizações etc. Não é fácil! E a falta de educação de qualidade gera comodismo, medo e insegurança que são barreiras no acesso à autonomia do pensamento. Nesse sentido, só é livre quem sabe ler de forma crítica, pois quem lê assim, recria a vida.
Os escravos, ao abrirem mão da liberdade, põem em risco nossa democracia, pois os sentimentos de temor e inveja àqueles que são livres, transformam-se em ódio e atitudes intolerantes e perversas também contra os que vivem fora da caverna e pensam no bem comum. Os escravos foram educados pelo ódio, que é, por natureza, a munição de ataque aos valores democráticos. Aprenderam a destilar veneno contra as diferenças e com isso entorpecem o desejo pela democracia entre os demais. O autoritarismo depende do extermínio da democracia, ou a manutenção desta apenas como fachada. O ódio emburrece, portanto. Ele é nutrido pela falta de educação para a vida, o viver na pluralidade. Triste ironia é que o ódio também é democrático: ele se espalha por qualquer ambiente, qualquer classe econômica, diferentes idades, gêneros, universitários, intelectuais, comerciantes, políticos, religiosos etc.
Temos então a difícil tarefa de lidar diariamente com “escravos raivosos” se quisermos defender a democracia. O que implica (outra triste ironia) defender os direitos dos prisioneiros voluntários. Essa luta só é possível através da educação politizada, pelo diálogo racional, que denuncia a ação silenciosa da alienação e da ideologia impregnadas nas almas criadas em cativeiros.
A cultura é a principal fonte de onde emanam todos os valores, os quais herdamos da comunidade que pertencemos. Pela interação social apreendemos esses valores e os reproduzimos. Alguns deles encarnam na gente até mesmo a contragosto – o que nos leva a crises existenciais importantes ao longo da vida, uma vez que todos esses valores introjetados em nossa tenra idade serão confrontados frequentemente com uma nova experiência da realidade momentânea. É nesse confronto que entra em cena a manipulação e sugestão ao retrocesso. Mas é nesse encontro também que pode surgir a possibilidade de um diálogo educativo, reflexivo e libertário. Portanto, o diálogo é um dever moral daqueles que buscam a democracia. O ideal de uma sociedade verdadeiramente democrática é que ela o seja por obrigatoriedade. Obrigatório no sentido de “vital”: AQUILO QUE DÁ A VIDA!


Henrique Aquino
Psicólogo

 

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