Nove décadas entre tecidos e memórias

31 de julho de 2023 11:31 675

Aos 90 anos, Isaías mantém intacta as lembranças do comércio que mudou a história de sua família

Apesar de a construção de uma vida acontecer a partir das tomadas de decisões, já que são elas que nos levam para um caminho e não para infinitos outros, às vezes, decidir é parte de um plano maior. Alguns chamam de destino, outros de sorte, acaso ou coincidência.
Mas, a verdade é que o que é para ser tem muita força.
Na vida de Isaías, a força motora que moldaria sua trajetória surgiu na forma de um viajante, sírio libanês, que passava por essas bandas numa época em que asfalto era raridade, sendo o cavalo o principal meio de locomoção. E também de uma decisão de seu pai, Pedro, que na época era dono de uma pequena venda, abastecida com balas e bolachas, compradas do tal viajante.


Num certo dia, o homem chegou trazendo novidades:

-O senhor já pensou em vender tecido? – disse.
Ciente do valor da mercadoria, Pedro, que também era alfaiate, respondeu que não poderia pagar por aquilo.

-Tudo bem, mas me deixa ver se o senhor tem bom gosto. Se fosse comprar, quais escolheria? – insistiu o viajante.
Usando da experiência que a alfaiataria lhe trouxe, Pedro selecionou alguns tecidos, certo de que aquilo era só um passatempo.

Porém, uma semana depois, alguém mandou avisar que havia chegado, no bairro da Estação, uma encomenda para ele. Na caixa, cerca de 80 peças de tecido, os quais Pedro havia selecionado.

-Pode devolver, não tenho como pagar. – disse ao responsável pela entrega.
Outra vez se viu diante da insistência de um homem:

-Por que você não fica? Todo mundo tem uma oportunidade na vida e isso pode ser a riqueza da sua família.
Com a possibilidade de dividir o pagamento em 6 parcelas, decidiu arriscar e transformar a pequena venda em loja de tecidos.
Isaías, então com 12 anos, logo começou a ajudar o pai no novo empreendimento.
O negócio vingou e conforme os anos passavam, mais freguesia e experiência adquiriram, até que, em 1962, Pedro decidiu passar a loja definitivamente para o filho.
Pouco tempo depois, um tecido específico, fez Isaías recalcular a logística de compra.
O morim, um pano leve e fino de algodão, até então era comprado em São Paulo por R$ 1,60 (o metro) – trazendo para valores atuais – e revendido a R$ 2,50. Porém, numa certa manhã, um cliente fiel chegou à loja dizendo que, em Perdões, comprava o produto a R$ 1,79, e, portanto, a diferença de preço estava pesando.
Contrariado com aquilo, Isaías decidiu começar a visitar outras cidades onde haviam fábricas de tecido, em busca de valores menores. Em Itaúna, região metropolitana de Belo Horizonte, encontrou o metro do morim por R$ 0,90. Bingo!

Passei a vender o metro a R$ 1,50 e recuperei o meu cliente.
Com a mesma motivação e persistência – combinação que não costuma falhar – passou a observar as informações contidas nas etiquetas dos tecidos, sempre anotando nome da fábrica e endereço, pois percebeu que comprando direto na fábrica, conseguiria o melhor preço e, consequentemente, venderia mais barato aos clientes.


Assim, seguiu percorrendo as cidades. Primeiro de carona, depois, no seu próprio carro. Um Fusca, comprado em 1974. Passou por Pará de Minas, Divinópolis, Zona da Mata, Cataguazes, Juiz de Fora, Barbacena, Leopoldina, Americana e outras. Bastava saber que havia uma fábrica de tecidos que Isaías dava um jeito de ir até lá.
E a habilidade para o comércio não parou por aí.
Dos tecidos, a loja expandiu-se para outros produtos. Ávido por novidades, começou a trazer calçados, presentes e itens para casa.

Uma vez, encontrei um jogo de pratos de quatro cores e achei aquilo tão bonito que resolvi trazer duas caixas. Vendeu muito rápido e logo fui buscar mais – relembra.
Como de costume, olhou as informações na caixa e para a segunda compra foi direto na fonte: a fábrica, localizada em Taubaté, interior de São Paulo.

Penso que na vida, precisamos arriscar, tentar algo melhor. Senão, você corre o risco de nunca conseguir chegar mais longe.
Não é só a habilidade de comerciante que impressiona em Isaías, a memória, no auge dos 90 anos, segue intacta. Conta em detalhes endereços de fábricas, datas, valores, nomes e dados específicos.
Da sua história, não deixa escapar nenhum acontecimento.


E é ao relembrar a convivência com os irmãos, que a empolgação se mostra ainda mais viva em seus olhos. Filho do meio, recorda com carinho a ligação com os outros quatro que já partiram.
Fala da parceria de vida inteira com o irmão mais velho, Israel, que era alfaiate como o pai e depois seguiu o caminho no empreendedorismo, sempre pedindo conselhos e compartilhando as ideias com Isaías. Relembra a irmã, Maria Aparecida, conhecida como Dadi, que dividiu com ele por muitos anos o atendimento no balcão da loja. E segue tecendo recordações com nitidez impressionante.
Entre as histórias, conta uma da época em que havia o mito do fim do mundo acontecer na chegada dos anos 2000, bem próximo ao seu septuagésimo aniversário.

Eu ficava pensando, será que vou chegar aos 70?
Para prevenir, no dia 31 de dezembro de 1999, decidiu que só depois da meia noite sairia de casa para comemorar a virada do ano.

Não pensei que no Japão, por exemplo, já era um novo milênio, portanto, o perigo já havia passado. No Brasil, era só questão de horário… – conta com o bom humor que lhe é familiar.
Ele não só chegou aos 70, como aos 90, mantendo a saúde física e mental.
Viu a virada do milênio, a cidade se desenvolver e um dos filhos seguir o caminho de comerciante, bem ali, onde tudo começou, tantos anos antes.
Agora, acompanha a carreira da neta Sarah, recém formada em Design de Moda, sendo também o tecido uma das matérias-primas da profissão.

-Vejo que o tecido mudou a história da minha família e proporcionou qualidade de vida pra todos nós. Fui criada aqui, no meio de tudo isso, o que com certeza inspirou a minha formação – conta Sarah, acompanhada do olhar orgulhoso do avô.


Quando pergunto se ele, depois de nove décadas de vida, tem algum arrependimento ou se faria algo diferente, responde pensativo:

-Talvez, se tivesse oportunidade naquela época, teria estudado e poderia seguir outra profissão…
Depois de uma pausa, completa:

-Ah, pensando bem, acho que não, seria comerciante mesmo.
Sorri com a resposta final, pois diante de tudo que pude ouvir naquela tarde de tantas memórias, ficou a percepção de que um diploma não mudaria o que foi vivido.
Pois o que é pra ser tem muita força.

*Renata Souza é jornalista, educadora e produtora de conteúdo.

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