”O sentir-ferido”

6 de maio de 2017 20:33 1515

O momento coletivo atual possui inegavelmente uma marca distintiva  em sua paleta de cores, ele está grifado pelos sentimentos e emoçõeshenrique de raiva, ódio, ira, fúria. Expressões afetivas essas que, uma vez fixadas em nossa postura relacional, infelizmente tornam a convivência um caminho tortuoso e difícil.
Boa parte das pessoas conduz suas vidas guiadas pelo “sentir”, todavia sem muito visitar a experiência do pensamento reflexivo. Esse modo unilateral de viver tem como característica um forte componente de irracionalidade. Por exemplo: no consumismo, compra-se mais pelo impulso, pelo encantamento à beleza, as sensações de prazer e status que o objeto desperta; mas não se compra através de um ato racional, quer dizer, não se questiona a necessidade, a funcionalidade ou pertinência das coisas. Por outro lado, sustentar o pensamento (racional) é como iniciar uma verdadeira luta, principalmente “contra” nós mesmos. O pensamento requer esforço para suspender temporariamente nosso conhecimento acerca do ponto avaliado, estratégias para se articular idéias difíceis, organização para direcionar o fluxo do raciocínio… Refletir nos põe em risco, risco de perdermos “coisas” que são irrecuperáveis como, por exemplo, a ignorância e a soberba. O pensamento é uma luta, e talvez a única que mereça de fato nossa total energia agressiva. E não o outro enquanto pessoa à nossa frente. Uma boa convivência depende da mesa farta de racionalidade.
Sabemos que uma vida sem seu aspecto afetivo é uma vida sem sabor, sem brilho, portanto fora de nossas pretensões. Mas o problema começa, e já começou, quando a existência passa a ser dirigida somente pelos afetos. Enquanto vivência particular, os afetos se mostram um delicado e perigoso instrumento de leitura da realidade e do outro. O sentir pode ser entendido como o conjunto dos cinco sentidos humanos, mas também é compreendido como a ressonância interna da pessoa na relação com o seu ambiente, com o outro e a vida. Ou seja, os afetos falam mais do afetado que dos fatos. Algumas pessoas, ao entrarem em relação com alguém ou com alguma situação, experimentam uma forte onda de raiva, medo, paixão etc. Todas essas qualificações afetivas expressam, portanto, a maneira como a pessoa sente esse outro ou a circunstância.
Nesse caso, deixar-se guiar pela emoção é o mesmo que “limitar a vida” à própria experiência, e, com efeito, descarrilhar-se por um caminho hedonista, um paraíso repleto de certezas, mas solitário como um deserto.
O sentir capta a aparência das coisas, seu aspecto imediato, e conecta a pessoa com o mundo. A ressonância interna que a pessoa experimenta repetidamente nas situações revela um registro emocional e que, por isso mesmo, pode distorcer a realidade a uma visão muito particularizada. Às vezes, o real nem é tão ameaçador assim, mas a pessoa o percebe como tal e se apavora como se corresse risco de morte, e contra-ataca! Esse sentir desproporcional é o sentir que sempre reage com intensidade, como quando um grande medo de uma conversa aparece, por exemplo, porque o assunto toca questões pessoais, feridas abertas, ou que estejam ainda em processo de cicatrização, significando motivos para que a pessoa se exalte e brigue. Essa resposta desproporcional revela o “sentir-ferido” do agressor. E desse “trauma” não nasce nenhuma coragem, só um lutador raivoso, irracional e narcísico que busca meramente proteger-se, talvez cuidar de sua ferida particular.
A questão que nos interessa aqui então é lembrar que esse sentir-ferido, que responde no contra-ataque, possui suas raízes bem distantes da situação que o faz emergir violentamente. Não foi a conversa com o outro que terminou em discussão, foi a ferida encruada de outras experiências relacionais, que agora se apresenta mais uma vez como uma fixação negativa. Com o passar do tempo, a pessoa percebe apenas os efeitos dessa ferida, mas não tem mais consciência de onde ela veio. Só vê suas relações terem sempre o mesmo destino, as mesmas brigas. O alienado quase sempre se sente injustiçado, mas por causa de seu próprio desarranjo que confunde a noção de direito com privilégios. Uma marca que, ao longo da vida, impede a convivência de tornar a existência mais interessante.
É fácil detectarmos por trás do ataque agressivo a fixação negativa de insegurança da pessoa. Essa vivência, no entanto, é pouco percebida pelo sujeito que a expressa, pois fora construída de forma paulatina e concomitante a uma longa exposição da própria vida à avaliação dos outros. Por isso é importante lembrarmos que em todo encontro estão presentes diferentes histórias de vida, que podem e devem, a partir do diálogo, ser atualizadas para a superação de determinadas marcas negativas que tanto geram sofrimento. Novas relações podem ressignificar ou repetir histórias, a depender da disponibilidade das pessoas envolvidas em se re-encontrarem ou não.


Por Henrique Aquino

 

Compartilhe este artigo