“PAPAE Noel”

27 de dezembro de 2016 14:49 1598

Caro leitor, tentarei recompensá-lo pela atenção paciente dispensada na extensão inevitável que pede o texto com um “presente de natal” – assunto de suma importância e pertinência para nossashenrique congregações natalinas de limpeza e renovação espiritual. Lembrando que “congregação” vem da palavra “ekklesia”, termo usado pelos primitivos gregos reunidos para tratar de assuntos de Estado, ou seja, assuntos de relevância coletiva e social.
1) A maior rede de atenção às pessoas com deficiência.
Diante da ineficiência do Estado em promover políticas públicas sociais que pudessem garantir a inclusão das pessoas com “deficiências”, surgiram famílias empenhadas em quebrar paradigmas e buscar soluções alternativas para que seus filhos com deficiência intelectual ou múltipla alcançassem condições de serem incluídos na sociedade, com garantia de direitos como qualquer outro cidadão. No Brasil, em 1954, no Rio de Janeiro, essa mobilização social começou a prestar serviços de educação, saúde e assistência social a quem deles necessitassem, em locais que foram denominados como Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), consolidando-se como a maior rede de promoção e defesa de direitos das pessoas com deficiência intelectual e múltipla. A Federação Nacional das APAEs (FENAPAES), organização social reconhecida como de utilidade pública federal, orienta as ações de mais de 2000 unidades presentes em todo território nacional. De acordo com o Censo IBGE 2010, o Brasil tem mais de 45 milhões de pessoas com deficiência, o que equivale a 23,9% da população do país.
Dos usuários, boa parte é composta por pobres, negros e, obviamente, todos portadores de alguma necessidade especial. Quer dizer, uma parcela da população brasileira que sofre opressões por todos os lados há muito tempo: indo desde as dificuldades de acessibilidade, passando pelo desprezo das políticas públicas (vide como exemplo a PEC 241/55 aprovada pelo senado, rejeitada por mais de 60% dos brasileiros e condenada pela ONU por atingir com maior violência os brasileiros mais vulneráveis, aumentando ainda mais os níveis de desigualdade social), até o peso humilhante dos olhares preconceituosos dos indivíduos “normais” da sociedade. Entendemos por isso que a APAE é uma instituição que deve atuar na mediação entre a criança com deficiência e a sociedade na qual ela está inserida. Inserida, mas não necessariamente incluída. “Inclusão” significa o estabelecimento de uma relação igualitária para a constituição da humanidade de todos os indivíduos de uma sociedade, além de toda e qualquer relação de cuidado com o outro em que sua singularidade seja valorizada e suas necessidades básicas atendidas. Aí reside a importância do trabalho contínuo realizado por essas instituições em nosso país.
A APAE de Lavras foi fundada em 1973, desde então tem por finalidade a assistência educacional, social e de saúde à pessoa com deficiência intelectual, associada ou não a outras deficiências. Ela é uma entidade beneficente de assistência social que presta serviço público e gratuito. De acordo com seu Estatuto, o Art. 4º, da finalidade desta instituição, destaca-se: “i) estimular, apoiar e defender o desenvolvimento permanente dos serviços prestados pela APAE, impondo-se a observância dos mais rígidos padrões de ética e de eficiência, de acordo com o conceito do Movimento Apaeano.” Corroborando esse princípio estatutário, estudos apontam que a gestão administrativa influencia de maneira decisiva a forma como se constitui a cultura institucional, facilitando ou dificultando a efetivação das práticas de inclusão. Uma instituição inclusiva é antes de tudo uma organização ética e democrática. Um sistema não pode se autoproclamar inclusivo mantendo condições desfavoráveis para o bom relacionamento de todos envolvidos (técnicos, diretores, usuários, familiares etc.). Portanto, uma cultura institucional inclusiva será mais efetivamente ativa se as relações forem permeadas pelo respeito aos direitos de todos e por uma dinâmica democrática e participativa.
Contudo, trabalhar nesses locais por algum tempo proporciona experiências que dão embasamento para se afirmar que, para além de sua facticidade, a deficiência está revestida do sentido atribuído às limitações pelo próprio portador, pela família e, infelizmente, pelas diversas práticas cotidianas conservativas desenvolvidas dentro dessas instituições.
2) APAE Noel
Há alguns anos, a FENAPAES promove a campanha “APAE Noel” em todo território brasileiro. A campanha foi criada para que todas as entidades interessadas pudessem comercializar bilhetes que concorrem ao sorteio de prêmios (carros, motos…), aproveitando a oportunidade para as APAEs captarem recursos. Sendo um convite da FENAPAES, algumas instituições optam por não aderirem, realizando por elas mesmas suas próprias campanhas de natal. A APAE de Lavras, no entanto, tem participação assídua nessa campanha nacional. A operacionalização consiste na aquisição de um determinado número de bilhetes junto a FENAPAES, que são distribuídos aos funcionários da instituição local, que por sua vez ficam incumbidos de venderem esses bilhetes ou pagarem por ele e concorrerem aos prêmios. Parte da arrecadação total é destinada a FENAPAES e outra fica para a instituição participante.
A APAE de Lavras, como todas as APAEs filiadas à Federação Nacional das APAEs necessita realizar programas, projetos e outras atividades para arrecadação de fundos, tendo em vista se tratar de entidade filantrópica, sem finalidade lucrativa. No entanto, de acordo com o processo nº 0002098.28.2014.5.03.0108 (trt3.jus.br), pela forma particular de administração da campanha “APAE Noel”, a APAE de Lavras se tornou Ré no Tribunal Regional do Trabalho 3ª Região (TRT3) em decorrência dos constrangimentos impostos pela entidade aos trabalhadores para compeli-los a participar desta campanha. Na prática, a instituição determina a quantidade de bilhetes a serem adquiridos por todos os funcionários, sem consulta prévia dos interesses destes, convocando-os de forma coercitiva a participarem da campanha, sob pena de constrangimentos públicos, que foram evidenciados pelas provas oral e documental colhidas.
A ação judicial contra a APAE de Lavras foi aberta pelo SENALBA – Sindicato dos Empregados em Entidades Culturais, Recreativas, de Assistência Social, de Orientação e Formação Profissional no Estado de Minas Gerais; processo que tramitou perante a Subseção da Comarca de Belo horizonte/MG. Oportuno lembrar que a legitimação extraordinária das entidades sindicais está expressamente assegurada na Constituição Federal (inciso III do artigo 8º), cabendo-lhe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas. Além disso, conforme presunção de direito estabelecida pelo artigo 468 da CLT, percebe-se o empregado como parte mais fraca na relação de emprego, estando permanentemente sujeito à coação por parte do empregador: O trabalhador, necessitando do emprego para sobreviver com sua família e, para não perdê-lo, às vezes necessita tolerar ofensas a seus direitos. Para possibilitar a reparação dessas lesões é que a Constituição garantiu aos sindicatos a legitimação para, como substituto dos componentes da categoria profissional, ajuizar ações objetivando resguardar os interesses coletivos.
De acordo com a decisão do TRT3, tal prática gera inegavelmente um clima de intimidação, apta a provocar prejuízos na esfera extrapatrimonial dos trabalhadores e representa danos morais que afetam o ânimo psíquico, moral e intelectual de todos os funcionários, que, portanto, devem ser reparados. Nesse mesmo processo, a APAE de Lavras também foi condenada por uso indevido de Banco de Horas. Considerando essas duas infrações – uso indevido de Banco de Horas e danos morais – o TRT3 arbitrou o valor de indenização total em 250 mil reais. Em tempo, neste mesmo mês de dezembro, a APAE de Lavras é também Ré em mais dois processos abertos contra ela por ex-professores que alegam violação de seus direitos trabalhistas.
As cenas finais dessa história terão que aguardar o próximo ano.
3) Hipotéticas considerações finais
Considerando que a APAE de Lavras não é nenhuma Odebrecht brasileira, convenhamos que essa “bagatela” indenizatória, caso fosse já executada, iria salgar o peru da instituição nesse Natal. E advinha quem, no fim das contas, de fato, iria pagar o pato com sorriso amarelo? Seguindo a regra geral, a corda sempre arrocha no pescoço dos mais fracos. Nesse caso, os usuários, pessoas portadoras de necessidades especiais, que já entram nessas instituições corcundas pelas diferentes opressões vividas em sociedade. Então seria o caso de se perdoar a iminente dívida contraída pela “instituição” devido ao seu efeito social danoso? Só se você acreditar que uma instituição existe por si só, como um ente dotado de vida própria, autônomo e independente de mãos humanas que a dirige.
Para que a inclusão de crianças com deficiência ocorra de modo sensível às necessidades de todos os envolvidos no processo, o ambiente demanda uma cultura institucional que privilegie as relações humanas estabelecidas entre as pessoas, e não apenas as questões estruturais. Em razão disso, uma dúvida preocupante e dramática se instaura: Uma instituição, que tem por princípios e finalidade defender e promover os direitos das pessoas com deficiência, conseguiria atuar com toda sua potência e probidade, uma vez que em sua política administrativa é capaz de práticas que passam por cima de seus próprios funcionários – portadores de direitos humanos e trabalhistas?
Feliz Natal!


Por Henrique Aquino – psicoterapeuta

 

Compartilhe este artigo