Seria a corrupção um problema de semântica?

6 de dezembro de 2016 13:20 1816

Que a corrupção é uma epidemia existente no Brasil há muito tempo ninguém duvida. De fato, desde seu nascimento histórico, seu “descobrimento”, há uma colonização do pensamento e das henriquepráticas políticas que cultivam a propensão de “modificação ou adulteração das características originais” da nossa sociedade. Com certa frequência tomamos conhecimento de ações corruptas, principalmente com o advento das tecnologias que nos garante maior acesso às informações que antes se circunscreviam apenas à rede televisiva e, portanto, repletas de distorções manipulativas operadas pelos interesses dos grupos que detêm o poder de sua gestão. Acontece que a corrupção, assim como a morte, quando ocorre muito próximo a nós, impacta de maneira mais profunda. Mesmo com a existência da onda passiva que tende à naturalização desse fenômeno como algo inexorável. E ainda bem! Triste o povo que consegue se calejar com tamanha barbaridade. O susto, a revolta e certa sensação de desesperança possuem, contudo, um fundo de força necessário para clarear nossas percepções acerca das relações de poder e, quem sabe, impulsionar-nos em modificar a forma de lidar com elas. Urge a necessidade de revermos a noção de democracia, de política e, sobretudo, do conceito de “próximo”. Neste último talvez resida a maior confusão que sustenta as atrocidades cometidas pelos sujeitos políticos quando no poder.
Dentre as primeiras definições no dicionário Houaiss, “próximo” significa “parente em primeiro grau; muito chegado, íntimo”. Ora, estaria aqui a justificativa para que um político considerasse pessoas de seu círculo de convivência com privilégios, em detrimento da expressa orientação de probidade no exercício de suas funções? Talvez. De repente, a corrupção seria um problema de semântica. Ou seja, o indivíduo entende como fazer pelo “próximo” enquanto ajudar somente aqueles que estão literalmente próximos a ele, como parentes e amigos. Um exemplo emblemático dessa confusão conceitual e do desalinho entre o espaço privado e político foram os discursos dos deputados na votação do impedimento da presidenta: “Pelo meu pai…; pela minha família…” Essa atitude de trazer a história pessoal para o meio público confirma justamente a limitação de alguns em relação ao conceito de “próximo”. Sobra dizer que essa vergonha alheia não se restringe ao alto escalão da política brasileira. Ela se encontra, como epidemia, bem próxima de nós.
A significação das palavras não é fixa ou estática. Por meio da imaginação, as palavras e o mundo podem ter seu significado ampliado, deixando de representar apenas a ideia original. Assim, frequentemente remetem-nos a novos conceitos por meio de associações, dependendo de sua colocação numa determinada frase. No entanto, existe a estimativa de que 15% a 20% da população tem algum tipo de dificuldade de linguagem ou na compreensão de textos, sendo parte delas por falta de uma educação qualificada e outros por deficiências ou atraso cognitivo. A compreensão literal da palavra é um sintoma recorrente, por exemplo, em alguns casos de esquizofrenia, na Síndrome de Asperger (autismo funcional) e em algumas pessoas com distúrbio específico da linguagem. Por isso, essas pessoas têm extrema dificuldade na compreensão de textos escritos, não conseguem entender quando uma pessoa está sendo irônica ou sarcástica e bloqueiam o raciocínio diante de uma metáfora. Eles não percebem que as palavras não são destinadas a serem entendidas literalmente, mas que dependem de um contexto. Imagine o desespero e sofrimento desses indivíduos diante de uma crônica ou poesia.
Nesse sentido, o corrupto parece fazer uso de noções limitadas aprendidas em sua vida particular, em família, no exercício de suas atribuições públicas, sem a integração de outros níveis de conhecimento linguístico e de mundo, que são necessários para o bom desempenho do dever político. Deveríamos, então, nos reorientar quanto ao afã de que ele sofra consequências penais pelos seus crimes de improbidade administrativa, considerando-a como um “mal entendido”, um problema de compreensão? Uma vez comprovada a inaptidão pela deficiência, estes não passariam a ser dignos de compaixão e tutela, inimputáveis frente aos “equívocos”? Assim como um portador de deficiência intelectual grave, um idoso acamado ou uma criança pequena, o corrupto com sua debilidade não demandaria a presença de um tutor para gerir algumas de suas ações? Em casos mais graves, não seria interessante o encaminhamento para assistência em algum dispositivo de saúde e assistência social do município para acompanhamento ou tratamento? Ou ainda, como ação preventiva, não seria o caso de resguardar, valorizar e fomentar o ensino das ciências humanas, uma vez que nelas a ideia de “próximo” é extensamente discutida, em termos éticos, podendo significar algo desde o universal, até o dentro de cada um?
Só para lembrar, o Houaiss ainda define “próximo” como “qualquer ser humano, considerado como um semelhante” – exemplifica inclusive usando um mandamento religioso: “amar ao próximo como a ti mesmo”. Mas o pobre corrupto, coitado, parece não chegar nem perto dessa significação política da palavra.


Por Henrique Aquino

Psicoterapeuta

 

Compartilhe este artigo